Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Sully Prudhomme - Ele era um homem doce...‎

O Nobel de 1901 dedica-se ao tema da vida do filósofo de origem judaica Bento de Espinosa, do mesmo modo como o fizeram o brasileiro Machado de Assis e o argentino Jorge Luis Borges, cujos sonetos foram objeto da postagem constante neste endereço do bloguinho.

Uma curiosidade? À leitura de “Ulisses”, de James Joyce – há uns dez anos, assim que foi publicado pelo selo Alfaguara da Editora Objetiva, na tradução da Professora Bernardina da Silveira Pinheiro –, grifei inúmeras passagens do livro, algumas das quais fazem menção a Espinosa, no caso, quase sempre em associação com o personagem Leopold Bloom, também de origem judaica, detentor de uma estante na qual constava os “Pensamentos de Espinosa”, em couro granadino. (JOYCE, 2007, p. 757)

J.A.R. – H.C.

Sully Prudhomme
(1839-1907)

C’etait un homme doux...

C’était un homme doux, de chétive santé,
Qui, tout en polissant des verres de lunettes,
Mit l’essence divine en formules très nettes,
Si nettes que le monde en fut épouvanté.

Ce sage démontrait avec simplicité
Que le bien et le mal sont d’antiques sornettes
Et les libres mortels d’humbles marionnettes
Dont le fil est aux mains de la nécessité.

Pieux admirateur de la sainte Ecriture,
Il n’y voulait pas voir un dieu contre nature ;
À quoi la synagogue en rage s’opposa.

Loin d’elle, polissant des verres de lunettes,
Il aidait les savants à compter les planètes.
C'était un homme doux, Baruch de Spinoza.

Baruch Spinoza
(1632-1677)
Autoria Desconhecida

Ele era um homem doce...

Ele era um homem doce, embora delicada
A saúde. E polindo os vidros às lunetas
Pôs a essência divina em fórmulas corretas,
Tão claras que trazia a multidão pasmada.

Demonstrava, prudente, e com simplicidade,
Que são o bem e o mal velharias pequenas,
E que os livres mortais são títeres apenas,
Cujos fios maneja a atroz necessidade.

Piedoso admirador da Sagrada Escritura,
Não queria ali ver um Deus contra natura,
E a ele a Sinagoga opunha-se raivosa.

Longe dela, polindo os vidros das lunetas,
Os sábios ajudava a contar os planetas:
Ele era um homem doce, o Baruch de Espinosa.

Referências:

JOYCE, James. Ulisses. Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva (Selo Alfaguara), 2007.

PRUDHOMME, Sully. C’etait un homme doux... / Ele era um homem doce... Tradução de José Jeronymo Rivera. In: RIVERA, José Jeronymo (Organização e tradução). Poesia francesa: pequena antologia bilíngue. 2. ed., revista e aumentada. Brasília, DF: Thesaurus, 2005. Em francês: p. 106; em português: p. 107.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Aglaia Costa de Souza - Rogativa

A poetisa carioca, radicada em Brasília, espera que os outros sejam condescendentes caso não corresponda aos seus apelos, pois em contraposição às ações que dela se esperam, tem ela outras tantas missões que talvez lhe façam mais sentido, naquilo que forem capazes de contentar-lhe o espírito.

 

Brevidade, praticidade, lógica, rudeza, justiça e lucidez são os pontos levantados na rogativa da autora, para os quais há embaraçantes contrapontos que a levam à outra margem do rio, ali onde há uma incontinência, um transbordamento a obstá-la de manter as coisas sob absoluto controle.

 

J.A.R. – H.C.

 

Aglaia Costa de Souza

 

Rogativa

 

Não me peçam

para ser breve:

estou enterrando um amor

(e o amor está sempre vivo).

 

Não me peçam

para ser prática:

estou destecendo uma vida

(e a vida mal principia).

 

Não me peçam

para ser lógica:

só, estou nadando em salmoura

(e a praia ainda se avista).

 

Não me peçam

para ser rude:

estou despregando os cravos

(e a carne recende, aflita).

 

Não me peçam

para ser justa:

estou desatando uma teia

(e a trama se urde sozinha).

 

Não me peçam

para ser lúcida:

estou arrancando raízes

(e as ramas loucas florindo).

 

Escutando Chopin

(Vladimir Volegov: pintor russo)

 

Referência:

 

COSTA DE SOUZA, Aglaia. Rogativa. In: __________. Murmúrio: poesia. Apresentação de Carlos Alberto dos Santos Abel. Brasília, DF: Thesaurus & Asefe, 1993. p. 73.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Julio Herrera y Reissig - Momento Poético ‎

O poeta uruguaio viveu o amor, certamente, com muita intensidade, em sua vida breve, a ponto de deixar-se flutuar no enlevo, com sua amada ao lado, no mais puro momento poético que se possa imaginar, porque sentimento puro, sem métricas para se apurar o acerto ou o erro dos que se submetem ao experimento...

Tudo bastante semelhante com aquele aforismo reelaborado de Hipócrates: “Vita brevis / ars longa / occasio praeceps / experimentum periculosum / iudicium difficile”, ou ainda: “Vida breve / arte longa / oportunidade fugaz / experiência enganosa / julgamento difícil”.

J.A.R. – H.C.

Julio Herrera y Reissig
(1875-1910)

Momento Poético

Con las pupilas ebrias de visiones,
persiguiendo una estrella asaz remota,
íbamos con la sombra que denota
las inefables reverberaciones...

Yo suspiraba sin haber razones
o hablaba indiferente y como idiota...
Ella reía con sonrisa ignota,
aunque menos que en otras ocasiones...

¿Era simple quimera, amor cobarde,
romanticismo o nubes de la tarde?
Yo sólo sé que regresamos llenos

de visiones, sonando hacia una estrella...
Yo suspiraba un poco más... ¿y Ella?
iY Ella sonreía un poco menos!...

En: “Los Parques Abandonados” (1902-1908)

Amantes Impressionistas
(Leonid Afremov: artista israelense)

Momento Poético

Com as pupilas ébrias de visões,
perseguindo uma estrela assaz remota,
íamos com a sombra que denota
as inefáveis reverberações...

Eu suspirava sem haver razões
ou falava indiferente e como estulto...
Ela ria com sorriso oculto,
embora menos que em outras ocasiões...

Era simples quimera, amor covarde,
romantismo ou nuvens da tarde?
Eu só sei que regressamos plenos

de visões, sonhando rumo a uma estrela...
Eu suspirava um pouco mais... E Ela?
E Ela sorria um pouco menos!...

Em: “Os Parques Abandonados” (1902-1908)

Referência:

REISSIG, Julio Herrera y. Momento poético. In: __________. Poesía completa y prosa selecta. Prólogo de Idea Vilariño. Edición, notas y cronologia de Alicia Migdal. Caracas, VE: Ayacucho, 1978. p. 95. (“Biblioteca Ayacucho”; Vol. XLVI)

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Erik Axel Karlfeldt - Adeus ‎

Tem-se aqui uma narrativa sobre a vida e a morte, num vagar correlacionado aos efeitos do tempo sobre a natureza, a relatar o contato próximo de alguém que, assumindo a voz enunciadora do poema, despede-se de uma pessoa na iminência do óbito, certamente uma dona que lhe é íntima.

A tristeza perante a morte, momento no qual os gestos e os sentimentos superam em muito as palavras, faz deste poema um belo antecedente a outras obras em terceiros domínios que não a literatura, como, por exemplo, o filme “Mãe e Filho”, de Aleksandr Sokurov (1997), cujo enredo trata do derradeiro dia de uma mãe moribunda, acompanhada de perto por seu filho.

J.A.R. – H.C.

Erik Axel Karlfeldt
(1864-1931)

Avskedet

Vi står du så plötsligt för mig,
du bleknade, vackra bild?
Vill du nicka mig tröst i den djupa höst
där jag känner mig sänkt och förspilld?
Den stunden nu från den stunden
av ett människoliv är skild.

Jag hörde du var dålig.
Så kom jag till din bädd,
men studsade för din vita hamn,
där du låg som till avfärd klädd.
Du hälsade glatt: “Jo, jag lever än.
Stig fram och var inte rädd”.

Vi talade lugnt, då drog du ner
mitt huvud till din barm
och gav mig den enda kyss vi bytt,
en hastig och febervarm.
Jag såg på den grymma vår som stod
och log vid din fönsterkarm.

Och nästan vardagsmuntert
du bjöd mig ditt adjö
och sade du visste mer än väl,
hur snart du var dömd att dö.
Och allt som våren framskred,
ditt liv smalt bort som snö.

Wotan despede-se de Brunhilde
“As Valquírias”, de Richad Wagner
(Ferdinand Leeke: pintor alemão)

Adeus

Por que te ergues tão de súbito à minha frente,
ó bela imagem empalidecida?
Queres com um aceno trazer-me o consolo
na profundeza do outono
em que me enterrei e me perdi?
Uma vida humana separa
o ser e o ter sido.

Vim a saber que estavas mal
e corri à tua cabeceira,
mas recuei diante de tua palidez.
Estavas deitada, vestida para a viagem
e me saudaste alegremente: “Vês, inda estou viva;
chega-te para mim, não tenhas medo”.

Calmamente nos contemplamos e então me puxaste
a cabeça de encontro a teu regaço
e me deste o único beijo que trocamos,
rápido e ardente de febre.
Eu olhava a cruel primavera
que sorria à tua janela.

Alegre, como num dia habitual,
me deste o teu adeus,
e me disseste que sabias
que em breve morrerias.
E à medida que chegava a primavera
tua vida se fundia como a neve.

Referências:

Em Sueco

KARLFELDT, Erik Axel. Avskedet. In: __________. Dikter. Stockholm, SE: Wahlström och Widstrand & Alb. Bonniers Boktryckeri, 1956. s. 379-380. Disponível neste endereço. Acesso em: 4 jan. 2018.

Em Português

KARLFELDT, Erik Axel. Adeus. Tradução de Ivo Barroso. In: __________. Poesias. Tradução de Ivo Barroso. Estudo introdutivo de Gunnar Brandell. Rio de Janeiro, GB: Editora Opera Mundi, 1973. p. 217. (“Biblioteca dos Prêmios Nobel de Literatura”)

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Austro-Costa - Livros ‎

O poeta e jornalista pernambucano foi, certamente, um homem aficionado por livros e, neste soneto, revela a sua experiência com a leitura de tantos deles, a renderem-lhe maus e bons proveitos, e como procedia em relação à guarda ou à troca de obras do acervo.

Diz ele que um livro mau não se empresta, se vende; e um livro bom não se devolve ao dono. Mas ora: e o que fazer com os livros bons, que são propriedade sua, se terceiros quiserem levá-los por empréstimo?

Posso declinar o modo como procedo com os meus livros: troco ou faço doação de obras fracas ou, ainda que não sendo fracas, daquelas que julgo já terem exaurido qualquer serventia para mim. Livros bons, caros ou raros não os empresto e nem afirmo aos quatro cantos que os possuo.

Agora, ficar com livros que eventualmente emprestei de alguém – rotina de que pouco lanço mão, exceto se houver dificuldade em obtê-los no mercado – é prática que não se amolda aos bons costumes, sobretudo se se ponderar que o usuário pode estar em ambos os lados do negócio, podendo sofrer os mesmos danos que houver imputado a outrem...

J.A.R. – H.C.

Austro-Costa
(1899-1953)

Livros...

Livros bons... Livros maus... Livros... Ah! Quantos
comprei e recebi, compro e recebo!
Mestres de encantos e de desencantos...
Mestres cujas lições com os olhos bebo...

Livros meus... Mil e tantos acalantos
em minhas horas más!... Só eu percebo
o que vale “cavar” uns “mil e tantos”
quando levo alguns deles para o “sebo”...

Sempre aferrado aos livros, noite e dia,
na ânsia de algo saber, – ânsia funesta
a que malucamente me abandono,

só aprendi esta filosofia:
um livro mau se vende, não se empresta;
e um livro bom... não se devolve ao dono...

Natureza-Morta com Livros e Vela
(Henri Matisse: artista francês)

Referência:

COSTA, Austro. Livros... In: __________. Meio dia eterno: antologia poética de Austro-Costa. Apresentação, seleção e notas de Paulo Gustavo. Recife, PE: Fundarpe, 1994. p. 130.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Gabriela Mistral - Antígona ‎

A voz lírica empresta um discurso que se atribui a Antígona, filha de Édipo e Jocasta, aliás, mãe de ambos, no momento em que o pai, já cego, fica a vagar pelo bosque sagrado das Eumênides, segundo o enredo das peças “Édipo-Rei” e “Édipo em Colono”, duas das obras pertencentes ao ciclo da trilogia tebana, de autoria do dramaturgo grego Sófocles, complementada ainda por uma última, “Antígona”, em cuja história ela vem a se tornar a heroína maior.

Tudo é tragédia no ciclo, embora haja intérpretes – como o francês Michel Foucault – que interpretam “Antígona” como um confronto entre visões normativas jusnaturalistas e positivistas, em decorrência de Antígona se orientar mais pelas leis divinas do que pelas leis humanas – afinal, ela descumpre o édito de Creonte para que não se enterrasse Polinice.

J.A.R. – H.C.

Gabriela Mistral
(1889-1957)

Antígona

Me conocía el Ágora, la fuente
Dircea y hasta el mismo olivo sacro,
no la ruta de polvo y de pedrisco
ni el cielo helado que muerde la nuca
y befa el rostro de los perseguidos.

Y ahora el viento que huele a pesebres,
a sudor y a resuello de ganados,
es el amante que bate mi cuello
y ofende mis espaldas con su grito.

Iban en el estío a desposarme,
iba mi pecho a amamantar gemelos
como Cástor y Pólux, y mi carne
iba a entrar en el templo triplicada
y a dar al dios los himnos y la ofrenda.
Yo era Antígona, brote de Edipo,
y Edipo era la gloria de la Grecia.

Caminamos los tres: el blanquecino
y una caña cascada que lo afirma
por apartarle el alacrán... la víbora,
y el filudo pedrisco por cubrirle
los gestos de las rocas malhadadas.

Viejo Rey, donde ya no puedas háblame.
Voy a acabar por despojarte un pino
y hacerte lecho de esas hierbas locas.
Olvida, olvida, olvida, Padre y Rey:
los dioses dan, como flores mellizas,
poder y ruina, memoria y olvido.
Si no logras dormir, puedo cargarte
el cuerpo nuevo que llevas ahora
y parece de infante malhadado.
Duerme, sí, duerme, duerme, duerme, viejo Edipo,
y no cobres el día ni la noche.

Édipo e Antígona
(Per Gabriel Wickenberg: pintor sueco)

Antígona

A Ágora me conhecia, a fonte
de Dirce e até mesmo a oliveira sagrada,
não a rota de poeira e de granizo
nem o céu gelado que morde a nuca
e importuna o rosto dos perseguidos.

E agora o vento que cheira a estábulos,
a suor e a resfôlego de gados,
é o amante que fustiga-me o pescoço
e machuca-me as costas com seu grito.

Viriam a desposar-me no verão,
meu peito amamentaria gêmeos
como Castor e Pólux, e minha carne
entraria no templo triplicada
a dirigir hinos e oferendas à divindade.
Eu era Antígona, rebento de Édipo,
e Édipo era a glória da Grécia.

Caminhamos os três: o encanecido
e um báculo desgastado que o ampara
por afastar-lhe o escorpião... a víbora
e o granizo cortante e por proteger-lhe
do resvalo das rochas infames.

Velho Rei, fala-me até onde já não possas.
Acabarei por despir um pinho para ti
e com essas ervas loucas fazer-te um leito.
Esquece, esquece, esquece, Pai e Rei:
os deuses dão, como flores gêmeas,
poder e ruína, memória e esquecimento.
Se não consegues dormir, posso carregar-te
o corpo novo que agora levas
e que se parece ao de um desditoso infante.
Dorme, sim, dorme, dorme, dorme, velho Édipo,
e não reivindiques nem o dia nem a noite.

Referência:

MISTRAL, Gabriela. Antígona. In: __________. Madwomen / Las locas mujeres. A bilingual edition: spanish x english. Edited and translated by Randall Couch. Chicago, IL: The University of Chicago Press, 2008. p. 94.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Arturo Torres-Rioseco - Nova Iorque ‎

O poeta chileno desenha um retrato escatológico da “Big Apple” em que se superpõem, no evoluir dos versos, pinceladas que geram contrastes cada vez mais vigorosos sobre o plano moribundo em que formigam – pelo menos enquanto o autor ali esteve, por pouco mais de um ano – sete milhões de almas.

A imagem final que perdura em sua mente é a de um cenário devastado pela ação predatória do homem, no qual os elementos animados da natureza espreitam o ocaso a cada passo, tal que a diferença entre permanecer vivo ou morrer paira sobre o infausto recurso a um revólver, capaz de superar todas as dores.

J.A.R. – H.C.

Arturo Torres-Rioseco
(1897-1971)

Nueva York

La tierra te sirvió de nodriza y maestra,
de la espina salieron las puntas de tus torres,
de los colmenares los cubos cálidos de tus arañacielos;
con la ciencia elemental de la hormiga movilizas tus siete millones
en las mañanas frescas de melón y en los crepúsculos de naranja.
Si cantan tus tranvías hay avisos de cañaverales,
si rien las negras hay perlas que tiritan en la carne fría de las ostras,
en el andar de tus mujeres hay rápidos enlaces de pulpos,
a tu sombra duermen los cementerios abrasados.
En tu río desnudos juegan los mancebos y las brisas,
mancebos rudos y doncellas de extasiado sexo,
mariposas gigantes pasan rozando las azoteas
atraídas por las orquídeas que florecen a destiempo.
Allí, en tus calles yo, joven sonâmbulo,
artesano dei sueño, de puntudas rodillas,
con una palidez de mil noches de abstinência y deseo,
mordiendo en mis vigilias visiones y en mis manos
deshojando camelias de mujeres vistas en los subways.
Yo, con humildad y silencio de perro de hombre muerto,
temeroso de cortar los pétalos de la rosa,
temeroso de agotar la copa púrpura de tus bares,
en una doliente continuidad de pobrezas provincianas.
En mi catre de hombre solo se morían las aves de recuerdo,
debajo de mis sábanas corrían los arroyos de mi infancia,
mis piernas descansaban largamente en estas aguas...
Yo sabía que ciertas cartas venían a mí por el mar,
cartas de voces calientes de amor, de solaridad, de ternura,
prisioneras en las heladas bodegas de los buques.
Estas eran mis muletas de hombre mutilado en ninguna guerra,
esas eran mis alas de canario caído en una hoguera,
esas eran mis garras de tigre convertido en tapiz
mi canto auroral de pájaro disecado.
Por ellas podía yo desafiar a las muchedumbres en sus conchas,
y herir el vientre de los peces arrojados a las playas...
Y vi que la vida de tu gente era una muerte constante,
y que las voces del amor eran como roce dc escamas,
y que los espejos deformaban los rostros de amigos y parientes,
y que las mujeres iban vestidas de plata y de mercúrio,
y me alejé de tu densa floresta de visiones
con la alegría sencilla de los jilgueros cautivos
que recobran el vuelo en la hoja del sauce y en el olmo.
Y por eso mi recuerdo de ti estará junto a un revólver,
al lado de un dolor agudo en los dedos y en los ojos,
en una pradera interminable y negra
en que se pudre una orquídea entre latas de aceite y chocolate
y agoniza un violinista con los ojos llenos de estrellas y de espanto.

Vista da Cidade de Nova Iorque:
Ponte do Brooklyn
(Debra Hurd: artista norte-americana)

Nova Iorque

A terra te serviu de nutriz e de mestra,
do espinho saíram as pontas de tuas torres,
dos colmeais, os cubos de teus arranha-céus.
Com a ciência elementar da formiga mobilizas teus sete milhões,
nas manhãs de melão e nos crepúsculos de laranja.
Se teus bondes cantam, é um aviso de canaviais,
se riem as negras, há pérolas tiritando na carne fria das ostras;
no andar de tuas mulheres há rápidos enlaces de polvo,
à tua sombra dormem os cemitérios abraçados.
Em teu rio, brincam nus os rapazes e as brisas.
Rudes rapazes e donzelas de extasiado sexo.
Mariposas gigantes passam roçando os terraços,
atraídas pelas orquídeas que florescem fora de tempo.
Por entre tuas ruas eu, jovem sonâmbulo,
artesão do sonho, de pontudos joelhos,
com a palidez de mil noites de abstinência e desejo,
em minhas vigílias mordendo visões, e nas mãos
desfolhando camélias de mulheres vistas no subway,
eu, com humildade e silêncio de cão de homem morto,
com medo de cortar as pétalas de rosa,
com medo de esgotar a taça vermelha de teus bares,
numa dolente continuidade de pobrezas provincianas.
Em meu catre de homem só morriam as aves da lembrança,
por baixo do lençol deslizavam os rios de minha infância,
minhas pernas descansavam largamente nessas águas.
Eu sabia que certas cartas chegavam a mim pelo mar,
cartas com vozes quentes de afeto e ternura,
prisioneiras dos gelados porões dos navios.
Estas eram minhas muletas de homem mutilado em nenhuma guerra,
minhas asas de canário caído na fogueira,
minhas garras de tigre convertido em tapete,
meu canto matinal de pássaro dissecado.
Por isto podia eu desafiar as multidões em suas conchas,
e ferir o ventre dos peixes atirados à praia.
E vi que a vida de tua gente era morte constante,
que as vozes de amor eram como atrito de escamas,
que os espelhos deformavam os olhos de amigos e parentes,
que as mulheres iam vestidas de prata e mercúrio,
e afastei-me de tua densa floresta de visões
com a alegria simples dos pintassilgos cativos
que retomam o voo na folha do salgueiro e no olmo.
Por isto minha lembrança de ti ficará junto a um revólver,
ao lado de uma dor aguda nos dedos e nos olhos,
num campo interminável e negro
em que apodrece uma orquídea entre latas de azeite e chocolate
e agoniza um violinista com olhos cheios de estrelas e de espanto.

Referência:

TORRES-RIOSECO, Arturo. Nueva York / Nova Iorque. Tradução de Carlos Drummond de Andrade. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia traduzida. Organização e notas de Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. Introdução de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2011. Em espanhol: p. 310 e 312; em português: p. 311 e 313. (Coleção “Ás de colete”; 20)