Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Ismael Nery - Confissão

Não há qualquer orgulho no poeta, à distinção de Satã: afinal, ele se despreza e vê-se como um nada. A par disso, busca tornar-se um Deus, por vocação e necessidade, para superar os limites impostos pelo binômio espaço x tempo.

Ele aspira a tudo em sua fome e sede de eternidade, pairar estável em cada dimensão a configurar o universo, este mesmo ou outros que porventura existam, num superlativo insuperável de onipresença e onipotência, somente concebível a quem se equipare à maior das potestades.

J.A.R. – H.C.

Ismael Nery
(1900-1934)

Nasceu em Belém do Pará e faleceu no Rio. Tinha gosto e talento para todas as artes, mas cultivou de preferência a pintura, tendo deixado neste domínio uma obra importante, ainda não convenientemente estudada. Depois de sua morte, viemos a saber que era também poeta, por uma série de poemas publicados na revista A Ordem, números de fevereiro e abril de 1935, por iniciativa de seu grande amigo Murilo Mendes. Vinham os poemas acompanhados de notas e comentários, que explicavam a concepção que do mundo e da arte formava o artista. Chamava-lhe ele “essencialismo”. Segundo Ismael Nery, o homem deve sempre procurar eliminar os supérfluos que prejudicam a essência a conhecer:
a essência do homem é das coisas que só podem ser atingidas mediante a abstração do espaço e do tempo, pois a localização num momento contraria uma das condições da vida, que é o movimento. Um essencialista deve colocar-se na vida como se fosse o centro dela para que possa ter sempre a perfeita relação das ideias e dos fatos. A essa doutrina, escreveu Murilo Mendes, “Ismael Nery imprimiu o caráter de sua fortíssima personalidade, sujeitando-a, porém, aos eternos princípios do catolicismo” (BANDEIRA, 1964, p. 79).

Confissão

Não quero ser Deus por orgulho.
Eu tenho esta grande diferença de Satã.
Quero ser Deus por necessidade, por vocação.
Não me conformo nem com o espaço nem
com o tempo,
Nem com o limite de coisa alguma.
Tenho fome e sede de tudo,
Implacável,
Crescente,
Eterna,
– De mim que me desprezo e me acredito um nada.

Arcanjo Miguel
(Guido Reni: pintor italiano)

Referência:

NERY, Ismael. BANDEIRA, Manuel (Org.). Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos. 2. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro, GB: Organização Simões, 1964. p. 81.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

José Agustín Goytisolo - Uma Revelação

Este poema do poeta espanhol mostra-se suficientemente autoexplicativo. Ademais, já lá se vão tantas postagens dedicadas a tornar explícita a tese de que depois que o autor leva a sua obra ao prelo e, daí, ao público, esta já não lhe pertence.

Todas as interpretações serão possíveis, pois estamos, no caso, adentrando o universo da literatura, mesmo que, a rigor, alguns interditos se imponham aos leitores, no mais das vezes, provenientes de conexões lógicas ou de confrontos com a realidade física.

Mas... e então?! As obras surrealistas – como a pintura que ilustra esta postagem – não estariam no domínio da arte?! Ao ser ficcional se impõem vedações a tornar explícito o universo não racional do inconsciente?! Claro que não – e desse modo temos essa panóplia exuberante de obras que se autodenominam “pós-modernistas”... Fazer o quê?!

J.A.R. – H.C.

José Agustín Goytisolo
(1928-1999)

Una Revelación

Todo lo que he sentido: todo
lo que cantaste con palabras
si son sólo emociones tuyas
– vivencias tuyas – poco importan.
Porque deseos y esperanzas
y mal de amor y sufrimiento
los tienen muchos. Mas si cuentas
algo que pueda despertar
una emoción dormida en otro
– una revelación entre las líneas –
el poema termina ahí
en el pecho sobresaltado
que lo repite y hace suyo
hasta olvidar quién lo escribiera.
Entre el poema y el autor
la primacía es del poema.

En: “Como los trenes de la noche” (1994)

Cartas para a Europa
(Rafał Olbiński: pintor polonês)

Uma Revelação

Tudo o que tenho sentido: tudo
o que cantaste com palavras
se são só as tuas emoções
– vivências tuas – pouco importam.
Porque desejos e esperanças
e mal de amor e sofrimentos
muitos os têm. Mas se contas
algo que possa despertar
uma emoção adormecida no outro
– uma revelação entre as linhas –
aí termina o poema
no peito sobressaltado
que o repete e o faz seu
até esquecer quem o escrevera.
Entre o poema e o autor
a primazia é do poema.

Em: “Como os trens da noite” (1994)

Referência:

GOYTISOLO, José Agustín. Una revelación. In: CASANOVA, José Francisco Ruiz (Selección y introducción). Antología cátedra de poesía de las letras hispánicas. 11. ed. Madrid, ES: Ediciones Cátedra (Grupo Anaya S.A.), 2014. p. 1050.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Tudor Arghezi - Testamento

O livro é o maior dos bens que se pode legar aos descendentes, a contar tudo o que houver transcorrido a quem o escrever, assim como aos seus antepassados – , ou como afirma o poeta romeno, a loucura vivenciada pelos ancestrais –, preservando, desse modo, o liame da narrativa familiar.

Trata-se de um longo cortejo, serpenteando como uma cobra, a rastejar desde a noite dos tempos, revolvendo as alegrias e dissabores dos finados servos em seu diuturno labor campesino, tudo gravado em toadas capazes de fazer espicaçar o humor do suserano, “como um bode apunhalado”.

J.A.R. – H.C.

Tudor Arghezi
(1880-1967)

Testament

Nu-ţi voi lăsa drept bunuri, după moarte,
Decât un nume adunat pe-o carte.
În seara răzvrătită care vine
De la străbunii mei până la tine,
Prin râpi şi gropi adânci,
Suite de bătrânii mei pe brânci,
Şi care, tânăr, să le urci te-aşteaptă,
Cartea mea-i, fiule, o treaptă.

Aşeaz-o cu credinţă căpătâi.
Ea e hrisovul vostru cel dintâi,
Al robilor cu saricile, pline
De osemintele vărsate-n mine.

Ca să schimbăm, acum, întâia oară,
Sapa-n condei şi brazda-n călimară,
Bătrânii-au adunat, printre plăvani,
Sudoarea muncii sutelor de ani.
Din graiul lor cu-ndemnuri pentru vite
Eu am ivit cuvinte potrivite
Şi leagăne urmaşilor stăpâni.
Şi, frământate mii de săptămâni,
Le-am prefăcut în visuri şi-n icoane.
Făcui din zdrenţe muguri şi coroane.
Veninul strâns l-am preschimbat în miere,
Lăsând întreagă dulcea lui putere.
Am luat ocara, şi torcând uşure
Am pus-o când să-mbie, când să-njure.
Am luat cenuşa morţilor din vatră
Şi am făcut-o Dumnezeu de piatră,
Hotar înalt, cu două lumi pe poale,
Păzând în piscul datoriei tale.

Durerea noastra surdă şi amară
O grămădii pe-o singură vioară,
Pe care ascultând-o a jucat
Stăpânul, ca un ţap înjunghiat.
Din bube, mucegaiuri şi noroi
Iscat-am frumuseţi şi preţuri noi.
Biciul răbdat se-ntoarce în cuvinte
Si izbăveste-ncet pedepsitor
Odrasla vie-a crimei tuturor.
E-ndreptăţirea ramurei obscure
Ieşită la lumină din pădure
Şi dând în vârf, ca un ciorchin de negi,
Rodul durerii de vecii întregi.

Întinsă leneşă pe canapea,
Domniţa suferă în cartea mea.
Slova de foc şi slova făurită
Împărechiate-n carte se mărită,
Ca fierul cald îmbrăţişat în cleşte.
Robul a scris-o, Domnul o citeşte,
Făr-a cunoaşte că-n adâncul ei
Zace mania bunilor mei.

O Livro
(Michaël Zancan: pintor francês)

Testamento

Não vou te deixar bens quando eu morrer:
Meu nome sobre um livro é o que vais ter.
Uma noite rebelde se desdobra
Desde os meus ancestrais e em ti deságua.
Pelos abismos e gargantas d’água,
Um cortejo antigo, como uma cobra,
Rasteja. Eles esperam que os levantes:
És jovem, filho, e este livro vem de antes.

Repousa este livro com fé à cabeceira.
Este livro – que é vossa escritura primeira –
Dos servos traz mantos carregados sem fim
Das ossadas que se derramam sobre mim.

Para que pudéssemos, pela primeira vez,
Converter em pena a enxada e em tinteiro a torquês,
Por entre o rebanho os antigos semearam
O suor do lavor dos séculos que passaram.
Com suas vozes para o gado talhadas
Esculpi as palavras adequadas
E os berços dos feitores por nascer.
E em mil e uma semanas a remoer
Em ícones e sonhos eu as transformei –
De farrapos, botões e coroas tramei.
O enérgico veneno em mel foi transformado,
E o seu poder incólume vai preservado.
Com frio vagar, desenredei a humilhação
Para envergá-la em súplica e na maldição.
As cinzas dos meus mortos ao fogo tomei
E um Deus de pedra com elas representei
– Domínio alteroso, que dois mundos concebeu,
Ele guarda os cumes daquilo que há de ser teu –.

Nossas dores, amarga e surda, conciliadas
Num distinto arrabil então foram cantadas
E o seu som, tendo-o ouvido, fez se contorcer
O suserano, como um bode apunhalado.
De feridas, mofo e lama fiz nascer
A beleza esquiva e o valor incriado.
O chicote aturado soergue-se em palavras
Para vir libertar, algoz clemente,
Dos nossos crimes a cria vivente.
E, perfilando-se, os ramos lúgubres
Vão-se erguendo da floresta fúnebre
E culminam em luz, qual cacho de tumores,
No fruto de todos os séculos de dores.

Deitada preguiçosamente no divã
A menina sofre lendo o livro com afã.
A letra de fogo e a letra forjada – vê! –
No livro, em pares, ei-las portanto casadas,
Como o ferro quente nas pinças abraçadas.
O vassalo o escreveu, o Senhor o lê,
Sem saber que em suas grotas abissais
Jaz a loucura dos meus ancestrais.

Referência:

ARGHEZI, Tudor. Testament / Testamento. Tradução de Raul Passos. In: PASSOS, Raul. Testament și alte poezii / Testamento e outros poemas. (n.t.) Revista Literária em Tradução. Florianópolis, SC. Edição bilíngue semestral, ano 4, n. 7, set. 2013. Em romeno: p. 128-129; em português: p. 134-135. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 nov. 2017.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Mário Cruz - Antagonismo

Nascido em Belém do Pará, em 1917, o poeta Mário Cruz, hoje por demais esquecido no cenário das letras pátrias – nem mesmo na internet encontramos o ano de seu falecimento –, venceu ao concorrer com o livro “Cânticos Bárbaros”, em 1937, o prêmio de poesia adjudicado pela Academia Brasileira de Letras.

O exemplar abaixo de sua poesia, como se pode perceber, tem apreciável grau de correlação com alguns poemas de Augusto dos Anjos (1884-1914), naquilo que pormenoriza os condicionamentos e atavismos que assolam o espírito humano, embora ainda algo distante da linguagem intricada e cientificista do poeta paraibano.

J.A.R. – H.C.

Mário Cruz
(1917-?)

Antagonismo

– Que atavismos herdei nos meus nervos doentios!
Por que esta sede atroz de volúpias estranhas?
E este anseio de luz, que me iguala às montanhas,
e este anseio de mar, que me assemelha aos rios!

E esta paixão febril de castos desvarios,
povoados de visões de místicas façanhas!
E este dom de sentir as angústias tamanhas
dos Lázaros do Amor, errantes e sombrios!

Domina-me o furor dos egipãs sagrados, (*)
e vejo desfilar, desnudos, os Pecados,
ébrios de vinho e sol, sob o fulgor das gemas.

E porque há um demônio e um deus lutando em mim,
sinto a sede carnal de carícias sem fim,
e a sede espiritual de renúncias supremas!

O Anjo da Guarda a Proteger uma Criança
(Domenico Fetti: pintor italiano)

Nota:

(*) Egipãs – Pãs que assumem a forma de um bode com cauda de peixe; conta-se que o primeiro egipã era filho de Pã e da ninfa Ega; ele teria ajudado Zeus em sua batalha contra Tifão, recuperando-lhe os tendões que haviam sido retirados pelo monstro; como recompensa, Zeus o colocou nos céus como a constelação de Capricórnio.

Referência:

CRUZ, Mário. Antagonismo. In: JORGE, J. G. de Araújo (Comp.). Antologia da nova poesia brasileira. Rio de Janeiro: Casa Editora Vecchi Ltda., 1948. p. 279.

domingo, 26 de novembro de 2017

Rumi - Uma Inadequada Comparação

Empregando a tradução de Coleman Barks e parceiros, do persa ao inglês, verti ao português o poema a seguir, correndo todos os riscos de haver-me distanciado ainda mais do original de Rumi: mas o autor haverá de me perdoar pelos equívocos não tencionados (rs)!

Afinal, o meu propósito é apenas dar a conhecer aos leitores do bloguinho mais um dos belos poemas escritos por esse grande mestre do sufismo, o qual, assim como o interpreto, tem um modo de ver que está para além de qualquer cizânia envolvendo credos diversos, pois a sua mística é toda voltada a uma jornada de ascensão espiritual.

J.A.R. – H.C.

Jalal ud-Din Rumi
(1207-1273)

An Awkward Comparison

This physical world has no two things alike.
Every comparison is awkwardly rough.

You can put a lion next to a man,
but the placing is hazardous to both.

Say the body is like this lamp.
It has to have a wick and oil. Sleep and food.
If it doesn’t get those, it will die,
and it’s always burning those up, trying to die.

But where is the sun in this comparison?
It rises, and the Iamp’s light
mixes with the day.

Oneness,
which is the reality, cannot be understood
with lamp and sun images. The blurring
of a plural into a unity is wrong.

No image can describe
what of our fathers and mothers,
our grandfathers and grandmothers, remains.

Language does not touch the one
who lives in each of us.

Daniel na cova dos leões
(Briton Rivière: artista britânico)

Uma Inadequada Comparação

Não há duas coisas semelhantes neste mundo físico.
Toda comparação revela-se inadequada e descuidada.

Você pode pôr um leão ao lado de um homem,
Mas ao fazê-lo haverá riscos para ambos.

Digamos que o corpo seja como este candeeiro.
Necessita de óleo e pavio. Sono e alimentos.
Se não os consegue, morrerá,
E sempre anda a abrasá-los, até que se extinga.

Porém onde está o sol em tal comparação?
No que ele se levanta, a luz do candeeiro
e a do dia misturam-se.

A unidade,
enquanto realidade, não pode ser apreendida
com as imagens do candeeiro e do sol. Confundir
a pluralidade na unidade configura um erro.

Nenhuma imagem é capaz de descrever
o que de nossos pais e mães,
de nossos avôs e avós, subsiste.

A linguagem não alcança aquele
que vive em cada um de nós.

Referência:

RUMI, Jalal ud-Din. An awkward comparison. In: __________. The essential Rumi: rough metaphors – more teaching stories. Translations by Coleman Barks with John Moyne, A. J. Arberry and Reynold Nicholson. Edison, NJ: Castle Books, 1997. p. 177.

sábado, 25 de novembro de 2017

Tadeusz Rózewicz ‎- Minha poesia

Em tradução do Prof. Aleksandar Jovanović, da USP, consignada em seu artigo “Cinco poetas da Europa Centro-Oriental: forja mágica de metáforas e temas”, a constar no periódico em referência, trazemos, neste momento, um poema que retrata o modo como o poeta polonês – cujo nome em grafia correta se apresenta logo abaixo de sua foto – vislumbra a própria poesia.

Veja-se que, distintamente a um número considerável de poesias consectárias de manifestos em cujos propósitos se enquadram, esta poesia limita-se e revelar-se impotente frente à configuração do real, dada a sua insubsistência, carência de valores e distanciamento dos padrões finalísticos mais frequentes, do que lhe resulta o escopo frustrado: não satisfaz quaisquer tarefas entre as que lhe são atribuídas...

J.A.R. – H.C.

Tadeusz Różewicz
(1921-2014)

Moja poezja

niczego nie tłumaczy
niczego nie wyjaśnia
niczego się nie wyrzeka
nie ogarnia sobą całości
nie spełnia nadziei

nie stwarza nowych reguł gry
nie bierze udziału w zabawie
ma miejsce zakreślone
które musi wypełnić

jeśli nie jest mową ezoteryczną
jeśli nie mówi oryginalnie
jeśli nie zadziwia
widocznie tak trzeba

jest posłuszna własnej konieczności
własnym możliwościom
i ograniczeniom
przegrywa sama ze sobą

nie wchodzi na miejsce innej
i nie może być przez inną zastąpiona
otwarta dla wszystkicjh
pozbawiona tajemnicy

ma wiele zadań
którym nigdy nie podoła

(1965)

Forma das Coisas por Vir
(Victor Bregeda: pintor russo)

Minha poesia

nada traduz
nada explica
nada expressa
não abarca totalidade alguma
não reifica esperança alguma

não cria regras novas
não participa de diversão alguma
possui lugar definido
que deve preencher

se não é esotérica
se não é original
se não deixa perplexo
assim deve então supostamente ser

obedece à própria necessidade
às próprias possibilidades
e limitações
é autodominada

não substitui coisa alguma
não pode ser substituída por coisa alguma
é aberta a tudo
sem segredos

possui muitas tarefas
que jamais satisfaz

(1965)

Referência:

ŻEWICZ, Tadeusz. Moja poezja / Minha poesia. Tradução de Aleksandar Jovanović. In: Universidade de São Paulo / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP). Cadernos de literatura em tradução, n. 17, 2017. Em polonês: p. 144; em português: p. 145. Disponível neste endereço. Acesso em: 27 out. 2017.