Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 7 de outubro de 2017

Cora Coralina - Todas as Vidas

Coralina, mulher do povo, escreve numa linguagem coloquial, inteligível a quem quer que seja, revelando o seu espírito de identidade com as várias facetas experimentadas pelas mulheres deste Pindorama, em particular de seu Goiás natal.

Não fogem aos seus olhos nem o fado cruciante das mulheres analfabetas, tampouco das messalinas perdidas numa vida que de modo algum é fácil, pois, aparentemente, tal como afirmava Terêncio, nada do que é humano se lhe apresenta como algo estranho.

J.A.R. – H.C.

Cora Coralina
(1889-1985)

Todas as Vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo..,

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

Cozinha com Idosa em seu Interior
(Pintor Anônimo do Século XVII)

Referência:

CORALINA, Cora. Todas as vidas. In: __________. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 13. ed. São Paulo, SP: Global, 1986. p. 45-46.

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