Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Celso Mauro Paciornik - Sagrada Intolerância ‎

Fico a imaginar o que teria a nos dizer o autor do poema abaixo, sobre a justiça – assim mesmo, com “j” minúsculo – ora a grassar neste Pindorama, enxovalhada com os Gilmares e Moros da vida, uma justiça do espetáculo torpe, a promover o que não é nem Direito nem Justiça, senão a mais genuína politicagem, com a maior desfaçatez, tudo de olhos bem desvendados?!

Temos, agora, um quadro de intolerância que, partindo de uma elite com mentalidade ainda atravessada pelo escravagismo, na qual se incorpora a grande mídia – parasita e, por isso mesmo, golpista! –, alcança de forma voraz o judiciário (não há erro na grafia!) e o torna um poder putrefato, a ser reescrito do zero! Contra a intolerância em que nos meteram, restauro a “sagrada intolerância” do poeta e tradutor paranaense, vertida no mais veemente de todos os desígnios!

J.A.R. – H.C.

Celso Mauro Paciornik
(n. 1946)

Sagrada Intolerância

Que importa
que um coração se tenha enchido de ódio
ante a podrificação inexorável dos sentidos
e dos sentimentos?

O ódio é meu e aos outros.
De condescendência basta
este afável cotidiano de concórdias
mesuras, penas e silêncios.

Frente a frente aqui
a este espelho branco de papel pautado
serei a minha imagem em tinta
em letras toscas e palavras brasas
que meu peito está em chamas
e meus olhos clamam
uma erupção de lágrimas amargas.

Nesses tempos de monumental burrismo
em que a sabedoria se reserva
aos adoradores de si mesmos

em que a memória de fatos e de feitos
se registra ao gosto de elegantes
corruptores rufiões do esforço alheio

em que o verbo se despoja de explosão e incêndio
e se presta tão somente à farsa açucarada
e à venda viciosa de mesmices

em que a tortura é feita lei e salva-pátria
e se financia a carrascória via impostos
e declarações de decorosa indignação

eu declaro
em desvario de sagrada intolerância:

Quero ver pender
da estátua caolha e brega da Justiça
a chusma toda algoz de traficantes
de verbos, vidas, vontades e verdades
que reinventa o mundo à sua podre imagem
e semelhança
e das próprias fezes se envergonha
a ponto
de não sentir seu cheiro.

Alegoria da Justiça e da Paz
(Theodoor van Thulden: pintor holandês)

Referência:

PACIORNIK, Celso Mauro. Sagrada intolerância. In: __________. Inversos tempos: suíte em quatro andamentos. Absurdo-mundo; Cozido à brasileira; Linguafiada e Sempre-vivo. São Paulo, SP: Estação Liberdade, 1992. p. 40-41.

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