Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Carpinejar - Há homens...

Extraído de um enredo que abaixo transcrevo, o poema desta postagem revela-se-nos como de autoria de uma das cinco Marias – nomeadamente a mãe das outras quatro –, a evidenciar o quanto o quotidiano pode desgastar qualquer relação conjugal, transformando a fidelidade num peso.

A hipotética genitora dirige o seu discurso à “espécie” masculina, e não apenas ao seu esposo, fazendo emergir suas percepções de como os homens exibem os seus desdouros, que aos poucos calam fundo na alma feminina, em indeléveis pensamentos. A outros pensamentos, todavia, a memória já não tem mais acesso...

J.A.R. – H.C.

31 de outubro de 20145       *************      42 DIÁRIO DO SUL

MULHER ENTERRA
MARIDO NO PÁTIO

Ex-secretário de Saúde é encontrado
morto em sua casa

São Leopoldo – Uma tragédia marcou o bairro Morro do Espelho, na noite de ontem. A poeta Maria de Fátima Ossian, 45 anos, enterrou seu marido no pátio. Segundo informações da 1ª DP, Maria de Fátima teria ocultado o médico psiquiatra e também escritor Mauro Ossian, 70 anos, ex-secretário de Saúde do município, no quintal de sua residência. Escavações localizaram o corpo do psiquiatra, envolvido em um cobertor. Ele acabou de ser retirado às 21h, mas a causa de sua morte no Instituto Médico Legal é dada como natural. A comunidade ficou abalada com o incidente. Dezenas de moradores acompanharam a remoção da vítima. Professora de música aposentada e autora do livro Última Pedra, Maria de Fátima demonstra não se lembrar de nada, sofrendo de amnésia temporária. Desesperada, gritava que não era seu marido que estava ali, mas os livros da casa. Um exame de sanidade indicará seu destino até a solução do caso. De acordo com a vizinha Ana Coimbra, a mãe e as quatro filhas eram conhecidas como “Cinco Marias”. Não saíam de casa há mais de 60 dias. Um anuário está entre as provas, com passagens escritas por todas as integrantes da família. A polícia atendeu as jovens, que confirmaram a visão materna de que a biblioteca havia sido enterrada. O delegado Martins Monteiro considerou estranha a prática de um diário coletivo, o que dificulta a identificação da verdadeira autora. Cogitou a possibilidade de o grupo pertencer à seita Doce Fim, que anuncia o Juízo Final para dezembro. Informações de parentes desmentem qualquer ligação com a religião. (CARPINEJAR, 2010, p. 119)

Fabrício Carpi Nejar
(n. 1972)

Há homens...

Há homens que comem e limpam
o suor ao mesmo tempo.
Há homens que têm paz ao mastigar.
Há homens que transam, tombam no canto
e resmungam sonhando.
Há homens inflamáveis,
movidos a querosene e ódio.
Há pensamentos que a gente não esquece
e não recorda.
A fidelidade pode ser cansaço.

Três Homens Jantando
(Talbot Hughes: pintor inglês)

Referência:

CARPINEJAR. Há homens que comem e limpam. In: __________. Cinco Marias: poemas. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2010. p. 41.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Nicanor Parra - Epitáfio

Já centenário – e muito vivo em seus 102 anos e pouco! – o poeta chileno escreve um gracioso epitáfio para si mesmo, a sublinhar o grupo social de suas origens, seus traços físicos e, ao final, a marca de seu temperamento, misto de anjo e fera.

Obviamente, Parra deseja apenas opor esse hipotético epitáfio, caricatural e propositadamente picaresco, aos modelos mais austeros, melhor dizendo, plenos de seriedade e solenidade, apostos nos túmulos dos mais abonados, para relevar as características – obviamente positivas – dos falecidos.

J.A.R. – H.C.

Nicanor Parra
(n. 1914)

Epitafio

De estatura mediana,
Con una voz ni delgada ni gruesa,
Hijo mayor de profesor primario
Y de una modista de trastienda;
Flaco de nacimiento
Aunque devoto de la buena mesa;
De mejillas escuálidas
Y de más bien abundantes orejas;
Con un rostro cuadrado
En que los ojos se abren apenas
Y una nariz de boxeador mulato
Baja a la boca de ídolo azteca
– Todo esto bañado
Por una luz entre irónica y pérfida –
Ni muy listo ni tonto de remate
Fui lo que fui: una mezcla
De vinagre y aceite de comer
¡Un embutido de ángel y bestia!

As quatro estações
(Pamela June Crook: pintora inglesa)

Epitáfio

De estatura mediana,
Com uma voz nem fina nem grossa,
Filho mais velho de professor de
ensino fundamental
E de uma costureira de fundo de loja;
Naturalmente magro
Embora devoto da boa mesa;
De bochechas esquálidas
E de bem mais fartas orelhas;
Com um rosto quadrado
No qual mal se veem os olhos
E um nariz de boxeador mulato
Sobre a boca de um ídolo asteca
– Tudo isto banhado
Por uma luz entre irônica e pérfida –
Nem muito arguto nem totalmente parvo,
Fui o que fui: uma mistura
De vinagre e azeite,
Um recheado de anjo e fera!

Referência:

PARRA, Nicanor. Epitafio. In: __________. Poemas y antipoemas. Santiago, CL: Nascimento, 1954. p. 65-68.

domingo, 29 de outubro de 2017

Langston Hughes - Híbrido

Langston Hughes, poeta afro-americano, é o autor do poema de hoje, cujo sujeito lírico expressa-se como se fosse, no caso brasileiro, um mulato, rebento da relação de um pai branco com mãe negra, que não encontra acolhida nem entre os negros – porque é meio branco –, nem entre os brancos – porque é meio negro.

Da maldição aos seus ascendentes ele agora se arrepende, reconhecendo que partira de um espírito conflituoso, em crise identitária, que mesmo no momento presente põe em dúvida o que haverá de ser o futuro, eis que transido num purgatório que antepõe a riqueza dos brancos à pobreza dos negros.

J.A.R. – H.C.

Langston Hughes
(1902-1967)

Cross

My old man’s a white old man
And my old mother’s black.
If ever I cursed my white old man
I take my curses back.

If ever I cursed my black old mother
And wished she were in hell,
I’m sorry for that evil wish
And now I wish her well.

My old man died in a fine big house.
My ma died in a shack.
I wonder where I’m gonna die,
Being neither white nor black?

Reminiscência Arqueológica
de Angelus de Millet
(Salvador Dalí: pintor espanhol)

Híbrido

Meu velho pai era branco,
Minha velha mãe era preta;
Se algum dia roguei praga ao meu velho pai
Bato agora na boca, arrependido.

Se alguma vez esconjurei minha velha mãe
E cheguei a querer que ela fosse para o inferno,
Agora me penitencio desses maus pensamentos
E desejo ardentemente
Que tudo lhe corra bem.

Meu pai morreu numa casa grande e bela,
Minha mãezinha numa miserável choupana;
Quem me dirá onde vou acabar os meus dias,
Não sendo branco nem preto!


Referência:

HUGHES, Langston. Cross / Híbrido. Tradução de Oswaldino Marques. In: MARQUES, Oswaldino (Compilação, tradução e notas). Poemas famosos da língua inglesa. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1956. Em inglês: p. 142; em português: p. 143. (“Obras Imortais”; v. 6)

sábado, 28 de outubro de 2017

Lêdo Ivo - O amanhecer das criaturas ‎

O gesto de se acordar, pela manhã, junto à amada, convola-se, nas palavras do poeta, de um evento ordinário, cotidiano, trivial, a um invulgar daguerreótipo de fatos que parecem resultantes do ato de se pingar um “colírio alucinógeno” – como o que lança mão o colunista José Simão, da F.S.P., o autodenominado “Esculhambador-Geral da República”! (rs)

Mas nisto consiste a arte da poética: apor sobre os olhos do(a) leitor(a) esse filtro que a tudo transforma, varrendo o pó que a passagem do tempo agrega sobre a interpretação que fazemos das coisas, acontecimentos, circunstâncias e pessoas, de modo a acrescer, como diria Camões, “novos mundos ao mundo”.

J.A.R. – H.C.

Lêdo Ivo
(1924-2012)

O amanhecer das criaturas

O dia forma-se
de quase nada:
um seio nu
por entre pálpebras,

o sol que raia
e a luz acesa
no arranha-céu
que a aurora lava.

A mão incerta
deixa na rósea
carne dormida
o gesto equívoco.

Tudo é lilá
na luminosa
e vã partilha.

No dia imenso
nascem tesouros:
curvos, redondos.

O pão à porta,
depois o leite,
e o erguer dos corpos.

Amanhecer dos Vulcões
(Mario Carreño: pintor cubano)

Referência:

IVO, Lêdo. O amanhecer das criaturas. In: __________. Os melhores poemas de Lêdo Ivo. Seleção de Sérgio Alves Peixoto. 2. ed. São Paulo, SP: Global, 1990. p. 96. (Série “Os Melhores Poemas”, n. 2)

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Brasileirão 2017 – Fim da 30ª Rodada – Projeções do Modelo Esotérico-‎Matemático (MEM)‎

O campeonato vai chegando ao seu final, e o desespero toma conta dos que estão no topo, assim como dos que se aproximam da zona do rebaixamento.

Explico-me: o Corinthians, que até então navegou tranquilo, por bonançosos pélagos, com uma diferença substancial de pontos em relação ao segundo colocado, viu essa margem cair vertiginosamente, de modo que, neste momento, limita-se a apenas 6 (seis) pontos, mercê de sua horrenda campanha no segundo turno: apenas o 16º colocado!

Apesar de tudo, o MEM ainda projeta o Timão como o campeão do presente certame, mas vejam, com apenas 1 (um) ponto de diferença em relação ao Palmeiras e ao Santos.

Ademais, o modelo prevê que, daqui até o final do campeonato, os 7 (sete) primeiros colocados não vão se alterar, embora possa haver alguma mudança de posição entre eles nessa faixa, a qual, na presente projeção, atém-se apenas à ordem entre Flamengo e Botafogo.

E lá embaixo, o pior parece se estabilizar para o Atlético-GO, Ponte Preta e Coritiba, embora, no visual, nada esteja ainda, de fato, definido, pois do 11º colocado – a Chapecoense – ao 19º colocado – o Coritiba – há uma diferença de 6 (seis) pontos, sendo que ainda serão disputados 24 (vinte e quatro).

E mais: em apenas uma rodada, podem-se alterar os times que se encontram entre a 15º e a 19º posição, pois em tal zona a diferença é de apenas 3 (três) pontos.

Esperemos pelas próximas 5 (cinco) rodadas: lá pela 35ª retornamos com nova projeção. Ok?!

Um grande abraço a todo(a)s.

J.A.R. – H.C.

Fontes:

Infobola





André Breton - A águia sexual exulta...‎

Um lídimo poema de tendência surrealista temos aqui: cheio de referentes associados à sedução, as imagens transplantadas às palavras pelo poeta parecem ter a premente necessidade de transmitir o espírito vivificador que paira nas entrelinhas dos sonhos.

Mesmo os componentes tangíveis da realidade transmutam-se em outros tantos estados da matéria, gerando um paradigma de formas concorrentes que aos comuns dos mortais, como este internauta, espontaneamente se permite interpretar como uma experiência prima-irmã da psicodelia.

J.A.R. – H.C.

André Breton
(1896-1966)

L’aigle sexuel exulte...

L’aigle sexuel exulte il va dorer la terre encore une fois
Son aile descendante
Son aile ascendante agite imperceptiblement las manches de la menthe
poivrée
Et tout l’adorable deshabillé de l’eau
Les jours sont comptés si clairement
Que le miroir a fait place à une nuée de frondes
Je ne vois du ciel qu’une étoile
II n’y a plus autour de nous que le lait décrivant son ellipse vertigineuse
D’où la molle intuition aux paupières d’agate œillée
Se soulève parfois pour piquer la pointe de son ombrelle dans la boue de
la lumière életrique
Alors des étendues jettent l’ancre se déploient au fond de mon œil fermé
Icebergs rayonnant des coutumes de tous les mondes à venir
Nés d’une parcelle de toi d’une parcelle inconnue et glacée qui s’envole
Ton existence le bouquet géant qui s’échappe de mes bras
Est mal liée elle creuse les murs déroule les escaliers des maisons
Elle s’effeuille dans les vitrines de la rue
Aux nouvelles je pars sans cesse aux nouvelles
Le journal est aujourd’hui de verre et si les lettres n’arrivent plus
C’est parce que le train a été mangé
La grande incision de l’émeraude qui donna naissance au feuillage
Est cicatrisée pour toujours les scieries de neige aveuglante
Et les carrières de chair bourdonnent seules au premier rayon
Renversé dans ce rayon
Je prends l’empreinte de la mort et de la vie
À l’air liquide

En: “L’Air de l’Eau” (1934)

Converta-me em pedra
(Sabina Nore: artista austríaca)

A águia sexual exulta...

A água sexual exulta pois uma vez mais vai dourar a terra
Sua asa descendente
Sua asa ascendente agita imperceptivelmente as hastes da hortelã-pimenta
E todo o adorável desnudar-se da água
Os dias são contados tão claramente
Que o espelho deu lugar a um enxame de frondes
Não vejo do céu mais que uma estrela
Ao nosso redor há apenas o leite a descrever a sua elipse vertiginosa
De onde a branda intuição nas pálpebras de ágata com olhos
Levanta-se às vezes para cutucar a ponta de sua sombrinha na fuligem da
lâmpada elétrica
Então das regiões em que lançada a âncora desdobra-se até o fundo dos
meus olhos fechados
Icebergs irradiam os costumes de todos os mundos por vir
Nascidos de uma tua parcela desconhecida e gelada que se descola
Tua existência é o buquê gigante a escapar dos meus braços
Mal atada ela traspassa os muros e estira as escadas dos prédios
Desfolhando-se nas vitrines da rua
Sempre parto para juntar-me às notícias
Hoje o jornal é de vidro e se as cartas já não chegam
Tal se deve a que o trem foi consumido
A grande incisão da esmeralda que deu origem à folhagem
Está cicatrizada para sempre e ao primeiro raio da manhã
As serrações da neve ofuscante e as minas de carne zumbem sozinhas
Atônito com esse raio
Recolho a impressão da morte e da vida
Ao ar líquido

Referência:

BRETON, André. L’aigle sexuel exulte... In: DÉCAUDIN, Michel (Éd.). Anthologie de la poésie française du XXe siècle. Préface de Claude Roy. Édition revue et augmentée. Paris, FR: Gallimard, 2000. p. 310-311. (Collection ‘Poésie’)

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Herman Melville - Camões (Antes e Depois)

Este poema em duas partes, do escritor e poeta norte-americano, foi publicado postumamente ao passamento de Melville, e se detém, primeiramente, a evocar os momentos que deram ensejo à obra mais célebre da literatura portuguesa, quando Camões esteve a serviço das armas lusitanas na Índia e em Macau, havendo sido aprisionado, pouco depois, em Goa: tudo são belas páginas que mesclam feitos heróicos a outros de lírica impecável.

A segunda parte, em forma de soneto, captura, por outro lado, a expressão de Camões enquanto heroi errante, convertido em poeta desencantado, vivendo os seus derradeiros dias, na pobreza, num hospital em Lisboa: triste fado para um vate que imortalizou o bravo espírito de aventura dos seus pares.

Um adendo: para quem deseja melhor se informar sobre a influência da obra de Camões – “Os Lusíadas”, em especial – nos trabalhos de Melville, tem-se aqui um artigo com o título “Melville e os portugueses”, de autoria da Profa. Dra. Irene Hirsch, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP/MG): mera coincidência as obras maiores de Camões e de Melville (“Moby Dyck”) passarem-se sobre o mar? Nem tanto ao mar nem tanto à terra! (rs).

J.A.R. – H.C.

Herman Melville
(1819-1891)

Camöens (Before)
(ASCHER, 1998, p. 90)

Ever restless, restless, craving rest –
Forever must I fan this fire,
Forever in flame on flame aspire?
Yea, for the God demands thy best.
The world with endless beauty teems,
And thought evokes new worlds of dreams:
Hunt then the flying herds of themes!
And fan, yet fan thy fervid fire,
Until the crucible gold shall show
That fire can purge as well as glow.
In ordered ardor, nobly strong,
Flame to the height of epic song.

Camões (Antes)
(ASCHER, 1998, p. 91)

Devo – incansável que descansaria –
sempre atiçar meu fogo? Não tem fim
o afã que, chama em chamas, arde em mim?
Sim, porque o Deus requer tua porfia.
O mundo exibe tal beleza, enquanto
mais mundos sonha a mente: vai, portanto,
caçar mil temas no ar para o teu canto.
E atiça, atiça o fogo até que, enfim,
comprove, acrisolado, o ouro sem par,
que o fogo é luz, mas sabe depurar.
Com árduo ardor, nobre vigor, ateia,
no alto mais alto, a chama epopeia.

Luís Vaz de Camões
(1524-1580)

Camöens in the Hospital (After)
(ASCHER, 1998, p. 92)

What now avails the pageant verse,
Trophies and arms with music borne?
Base is the world; and some rehearse
How noblest meet ignoble scorn.
Vain now the ardor, vain thy fire,
Delirium mere, unsound desire:
Fate’s knife hath ripped thy chorded lyre.
Exhausted by the exacting lay,
Thou dost but fall a surer pray
To vile and guile ill understood;
While they who work them, fair in face,
Still keep their strength in prudent place,
And claim they worthier run life’s race,
Serving high God with useful good.

Camões no Hospital (Depois)
(ASCHER, 1998, p. 93)

De que vale – cortejo triunfante
de armas, troféus e música – o teu verso?
O mundo é vil; há quem, no entanto, cante
que o fado do mais nobre é sempre adverso.
Inúteis já, teu fogo e ardor contínuo
reduzem-se a delírio e desatino:
rasgou-te a lira, o gume do destino.
Exausto da exigente trova, agora
te tornas presa fácil da pletora
de enganos traiçoeiros e do engodo;
mas quem finge virtude e os trama é gente
que ainda preserva num lugar prudente,
a força e diz viver mais dignamente
servindo em tudo a Deus no melhor modo.

Referência:

ASCHER, Nelson (Tradução e Organização). Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1998. (Coleção “Lazuli”)

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Mário Chamie - Autoestima

O poeta exprime autoestima com o lastro multifacetado de suas origens: há menção à influência grega, italiana, síria, árabe e franco-egípcia, no plano cultural; e no âmbito religioso, aos credos católico, islâmico e copta.

Firme em suas convicções, nem se dá por atemorizado pelo repto de seus adversários. E Damasco é o referente maior de onde emanam os ascendentes que interferem em seu modo de ser – meio árabe, meio latino.

J.A.R. – H.C.

Mário Chamie
(1933-2011)

Autoestima

Sou Chamie,
venho de Damasco.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Sírio sou helenizado.

De Damasco
ao meu legado,
sou católico
e islâmico,
copta apostólico
catequizado.

No pórtico
mediterrâneo,
sou ático e arábico.
Vou contra o deserto
de desafetos contrários.

Sem custo nem preço
que se meça,
em nome de meu gênio
atlântico e adriático,
desprezo a cabeça
e a sentença
de meus adversários,
adversos e vicários.

Sou Chamie, Mário.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Por onde entro,
venho de Damasco
pela porta
do apóstolo Paulo.
Sírio sou helenizado.
Venho de Damasco,
por onde saio.

Tocador de Flauta
(V. V. Swamy: artista indiano)

Referência:

CHAMIE, Mário. Autoestima. In: __________. Caravana contrária: poemas. São Paulo, SP: Geração Editorial, 1998. p. 26-27.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Luis Buñuel - Pássaro de Angústia

De Buñuel tenho algumas recordações em função das sessões promovidas pela Associação Paraense de Críticos Cinematográficos (APCC), no antigo cineminha existente na Base Naval de Belém – o Guajará –, lá pelos fins dos anos 70, começo dos 80, quando entrei em contato com muitas de suas películas, a exemplo de “Um Cão Andaluz” (“Un Chien Andalou”, 1928), “Os Esquecidos” (“Los Olvidados”, 1950), “Nazarin” (1958), “Viridiana” (1961), “O Anjo Exterminador” (“El Ángel Exterminador”, 1962), dentre outras.

O poema desta postagem, de sua autoria, muito reflete as tendências surrealistas que hauriu da companhia do pintor Salvador Dalí, aliás, com quem desenvolveu o roteiro para o mencionado “Um Cão Andaluz”, um filme curto, a se estender por não mais de meia hora, com o qual você, internauta, pode se deliciar acessando o seguinte endereço.

J.A.R. – H.C.

Luis Buñuel
(1900-1983)

Pájaro de Angustia

Un plesiosauro dormía entre mis ojos
mientras la música ardía en una lámpara
y el paisaje sentía una pasión de Tristán e Iseo.

Tu cuerpo se ajustaba al mío
como una mano se ajusta a lo que quiere ocultar;
despellejada
me mostraba tus músculos de madera
y los ramilletes de lujuria,
que podían hacerse con tus venas.

Se oía un galope de bisontes en celo
entre nuestros pelos que temblaban como las
hojas de un jardín;
todos los diálogos de amor se parecen,
todos tienen acordes delirantes,
pero el pecho aplastado
por una música de recuerdos seculares;
luego viene la oración y el viento,
el viento que teje sonidos en punta
de una dulzura de sangre,
de aullidos hechos carne.

¿Qué anhelos, qué deseos de mares rotos
convertidos en níquel
o en un canto ecuménico de lo que pudo ser tragedia,
nacerán, los pájaros de nuestras bocas juntas,
mientras la muerte nos entra por los pies?

Tendida como un puente de besos de piedra dio la una.
Las dos volaron con las manos cruzadas sobre el pecho.
Las tres se oían más lejanas que la muerte.
Las cuatro ya temblaban de alba.
Las cinco trazaban con compás el círculo
transmisor del día.

A las seis se oyeron las cabrillas de los alpes
conducidas por los monjes al altar.

Amor Cúbico Não Geométrico
(Sulimov Alexandr: pintor russo)

Pássaro de Angústia

Um plesiossauro dormia entre meus olhos
enquanto a música ardia em uma lâmpada
e a paisagem sentia uma paixão de Tristão e Isolda.

Teu corpo se ajustava ao meu
como uma mão se ajusta ao que quer ocultar;
despelada,
mostrava-me teus músculos de madeira
e os ramalhetes de luxúria
que podiam ser feitos com tuas veias.

Ouvia-se um galope de bisões no céu
entre nossos cabelos que se agitavam como as
folhas de um jardim;
todos os diálogos de amor se parecem,
todos têm acordes delirantes,
fora o peito oprimido
por uma música de recordações seculares;
logo vêm a oração e o vento,
o vento que tece sons na ponta
de uma doçura de sangue,
de uivos feitos carne.

Que anelos, que desejos de mares fendidos
convertidos em níquel
ou em um canto ecumênico do que pôde ser tragédia,
nascerão, os pássaros de nossas bocas juntas,
enquanto a morte nos entra pelos pés?

Deu uma hora estendida como uma ponte de
beijos de pedra.
As duas voaram com as mãos cruzadas no peito.
As três se ouviam mais distantes que a morte.
As quatro já se agitavam com o romper do dia.
As cinco traçavam com compasso o círculo
transmissor do dia.

Às seis se ouviram as ovelhas dos Alpes
conduzidas pelos monges ao altar.

Referência:

BUÑUEL, Luis. Pájaro de angustia. In: __________. Luis Buñuel: obra literaria. Introducción y notas de Agustín Sánchez Vidal. Zaragoza, ES: Ediciones de Heraldo de Aragón, 1982. p. 142.