Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 30 de abril de 2017

Dannie Abse - Mistérios

Reconhecendo a impossibilidade de se ter certeza absoluta sobre as coisas do mundo, Abse, galês de origem judaica, partiu de estudos médicos para ancorar na literatura. Tal como ao fim da vida se identificava, tornou-se um poeta que assumiu a medicina como um hobby sério.

Sua poesia se desenvolve em dualidades – adormecer/despertar, certeza/incerteza, permanência/impermanência e por aí vai –, para, pouco a pouco, acercar-se dos mistérios do universo, deixando transparecer as premissas da inescapável vulnerabilidade humana.

J.A.R. – H.C.

Dannie Abse
(1923-2014)

Mysteries

At night, I do not know who I am
when I dream, when I am sleeping.

Awakened, I hold my breath and listen:
a thumbnail scratches the other side of the wall.

At midday, I enter a sunlit room
to observe the lamplight on for no reason.

I should know by now that few octaves can be heard,
that a vision dies from being too long stared at;

that the whole of recorded history even
is but a little gossip in a great silence;

that a magnesium flash cannot illumine,
for one single moment, the invisible.

I do not complain. I start with the visible
and am startled by the visible.

Da série “Helga”
(Andrew Wyeth: pintor norte-americano)

Mistérios

À noite, não sei quem sou
quando sonho, quando estou dormindo.

Desperto, susto minha respiração e escuto:
uma unha do polegar arranha o outro lado da parede.

Ao meio-dia, entro numa sala iluminada pelo sol
para observar a luz da lâmpada acesa sem qualquer motivo.

Por ora, eu deveria saber que poucas oitavas podem ser ouvidas,
que uma visão se extingue ao se olhar fixamente por muito tempo;

que toda a história registrada não é mais
que um pequeno falatório num grande silêncio;

que um flash de magnésio não pode iluminar,
por um só instante, o invisível.

Não lamento. Eu começo com o visível
e por ele sou surpreendido.

Referência:

ABSE, Dannie. Mysteries. In: BENSON, Gerard; CHERNAIK, Judith; HERBERT, Cicely (Eds.). Best poems on the underground. 1st. publ. London, EN: Weidenfeld & Nicolson, ‎‎2009. p. 3.

sábado, 29 de abril de 2017

Claudio Mello e Souza - Claro-escuro

Como numa pintura em que os contrastes se acentuam por meio da aposição de cores mais ou menos escuras, esta poesia do poeta e cronista Mello e Souza descreve o retraimento do eu lírico no domínio da vida privada, enquanto na esfera pública transcorrem fatos políticos desabonadores da história do país.

 

A opressão se passa pela ostensiva falta de liberdade e a morte que a espreita, pela fome de alimento e de justiça, pelos crimes que transformam a cabeça do poeta num cárcere político, mas ainda assim a última instância de consciência insubmissa.

 

J.A.R. – H.C.

 

Claudio Mello e Souza

(1935-2011)

 

Claro-escuro

 

Do lado de lá do vidro da janela,

a vida decanta a noite:

tudo ó possível, nada demente.

Com quem traz na entranha,

fêmea aberta, um riacho feminino,

um córrego só nascente.

 

Do lado de cá do vidro, a minha vida

cai como um peso de papel

– e dentro do peso cai a neve

sobre a cidade sonhada.

Ser feliz não é uma questão de ordem.

 

Manchas furta-cores roubadas

da metade escura do poente.

Nos dois lados da janela, a noite,

 

carbono ainda marcado pelos dedos

deste dia que passou, este papel

que a claridade torna original:

desfaz o local do crime

e apaga a impressão digital.

 

(É fácil descobrir quem me matou:

sou meu mordomo

e me descubro dentro do meu sono.)

 

O sangue escorre em ritmo de mel.

 

Transfundir meu espanto para o papel.

Minha cabeça é um cárcere político,

meus ideais já foram torturados.

Vamos, está na hora de irmos,

vamos pensar tão alto

que o mundo não pense que estamos calados.

 

Do lado de cá dos óculos,

por dentro dos olhos, a luz da noite.

Tudo quanto no escuro me parece claro:

sou tantos em tão poucos, sou tão raro

que me calo: a minha silhueta é um borrão

e minha sombra não me segue mais;

libertou-se de mim, libertei-me de mim.

Alfombra, pasto de estranhos:

os torturadores fazem a sesta,

enquanto a morte espreita a liberdade.

 

Está tudo em ordem, ate que eles recebam a ordem

unida, poluída.

Baionetas se calam para fazer silêncio.

A vida pode explodir.

A morte passa a ser recomendável.

 

É meio-dia em mim: a cicatriz alegre de um raio

me faz tão claro quanto este papel.

Estou no jardim. Deixo que o sol me sangre.

Os amigos, os inimigos, os estranhos que doeram,

doem lá dentro de mim.

Gardênia branca, cheiro de desmaio.

Hambre, hombre. As Américas recebem o Nobel.

Temos sorte: sai o prêmio para nossa morte.

 

Flagelação de Cristo

(Caravaggio: pintor italiano)

 

Referência:


MELLO E SOUZA, Claudio. Claro-escuro. In: __________. Passageiro do tempo. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1985. p. 45-47. (Poesia Brasileira)

sexta-feira, 28 de abril de 2017

William Carlos Williams - Soneto em Busca de um Autor

Em formato mais do que inusitado para um soneto, mantidas apenas as quatorze linhas convencionais, WCW moteja com o poema de amor tradicional, empregando a palavra “odor” (odor) – em vez de “fragance” (fragância) ou “scent” (aroma), mais afeitos à tendência romântica –, para, enfim, deplorar o fato de ainda não se ter empregado, no domínio dessa forma clássica de poema, os odores dos bosques ou dos pinheiros como metáfora para o odor corporal dos amantes.

Sem dúvida, o efeito naturalístico que o autor imprime ao poema resulta em mescla dos impactos resultantes de fatos objetivos com conteúdo erótico, sem alusão, contudo, a intuições, passionalidades ou abstrações – que transformariam o poema numa espécie de visão sensitiva da realidade.

J.A.R. – H.C.

William Carlos Williams
(1883-1963)

Sonnet in Search of an Author

Nude bodies like peeled logs
sometimes give off a sweetest
odor, man and woman

under the trees in full excess
matching the cushion of

aromatic pine-drift fallen
threaded with trailing woodbine
a sonnet might be made of it

Might be made of it! odor of excess
odor of pine needles, odor of
peeled logs, odor of no odor
other than trailing woodbine that

has no odor, odor of a nude woman
sometimes, odor of a man.

Primeiro Amor
(Leonid Afremov: pintor israelense)

Soneto em Busca de um Autor

Corpos nus como troncos descascados
exalam por vezes um aroma dos mais
doces, homem e mulher

sob as árvores em pleno desregramento
condizente com a alfombra de

perfumosas folhas de pinheiro
bordada de madressilvas rasteiras
um soneto podia ser feito disso

Podia ser feito disso! aroma de desregramento
aroma de agulhas de pinheiro, aroma de
troncos descascados, aroma de aroma algum
salvo o de madressilvas rasteiras que

não têm aroma, aroma de mulher nua
por vezes, aroma de homem.

Referência:

WILLIAMS, William Carlos. Sonnet in search of an author / Soneto em busca de um autor. Tradução de José Paulo Paes. In: __________. Poemas. Seleção, tradução e estudo crítico de José Paulo Paes. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1987. Em inglês: p. 258; em português: p. 259.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Guilherme de Almeida - A Exaltação dos Sentidos

Almeida retrata, em versos com tendência simbolista, a paisagem urbana elegante de São Paulo no início do século passado, nomeadamente o espaço demarcado pela Praça da República, com os seus plátanos.

São seis estrofes em que o olhar do poeta se estende sobre a mulher que está à sua frente, vagando ao longo da alameda, com o seu “turbilhão de seda” e “sedução fugace”, mal tocando o chão, inspirando-lhe um desejo por algo, digamos assim, bem esquivo, a um só tempo tão perto e tão distante...

J.A.R. – H.C.

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

A Exaltação dos Sentidos

O outono despe os plátanos, tecendo,
ao longo da alameda,
uma complicação de talagarça...
Maquinalmente estendo
o olhar vadio: um turbilhão de seda
foge, num passo elástico de garça.

Sigo a silhueta: a curva ágil do salto
toca, leve, o betume.
Sigo-a... e, seguindo a sedução fugace
daquela flor do asfalto,
embriaga-me um anônimo perfume
que é como um beijo que se evaporasse...

Alcanço-a, falo. E ela responde, a esmo,
qualquer coisa que tange
no bojo azul da tarde de opala...
E eu não distingo mesmo
se é sua voz de tafetá que range,
seco ranger do vestido que me fala,

Toco-a de levo e com unção tamanha
– a unção que o outono evoca –
que sinto apenas que por mim perpassa
a sensação estranha
que acaricia os dedos de quem toca
um pensamento, um sonho, uma fumaça...

Beijo-a: sinto um sabor inédito e acre.
E beijando-a, parece
que a não beijei, mas que a provei... É como
se uma flor cor de lacre
houvesse haurido o pólen ou tivesse
mordido a polpa histérica de um pomo.

Deixo-a... Eu nunca supus que, eternamente,
meus olhos, meu olfato,
meu paladar, meu tato e meus ouvidos
sentiriam somente
essa que hoje e o meu êxtase insensato
e a eterna exaltação dos meus sentidos!

Grandes Plátanos
(Vincent van Gogh: pintor holandês)

Referência:

ALMEIDA, Guilherme de. A exaltação dos sentidos. In: __________. Toda a poesia. Tomo II. Messidor. A dança das horas (1918-1919). São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1952. p. 91-93.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

D. H. Lawrence - Pansies

Eis aqui alguns pensamentos do autor inglês, ordenados sob a forma de poemas, selecionados e traduzidos pelo escritor paulistano Sérgio Milliet: neles podemos constatar a sabedoria de um homem já maduro, que ama a vida, mas amargurado pela maneira como a “civilização” desanda.

Lawrence transmitiu-nos a sua experiência com naturalidade, sutileza e inteligência, tendo-a coligido na obra intitulada “Pansies” (1929), uma variante inglesa para a palavra de origem francesa “Pensées”, a significar um punhado de pensamentos, reflexões, conjecturas.

J.A.R. – H.C.

D. H. Lawrence
(1885-1930)

Pansies

I (LAWRENCE, 2002, p. 553)

Whom the gods love, die young.
How the gods must hate most of the old, old men today,
the rancid old men that don’t die
because the gods don’t want them
won’t have them
leave them to stale on earth.
Old people fixed in a rancid resistance
to life, fixed to the letter of the law.
The gods, who are life, and the fluidity of living change
leave the old ones fixed to their ugly, cogged self-will
which turns on and on, the same, and is hell on earth.

II (LAWRENCE, 2002, p. 503)

I never know what people mean when they complain of loneliness.
To be alone is one of life’s greatest delights, thinking one’s own
thoughts,
doing one’s own little jobs, seeing the world beyond
and feeling oneself uninterrupted in the rooted connection
with the centre of all things.

III (LAWRENCE, 2002, p. 549)

There is nothing to save, now all is lost,
but a tiny core of stillness in the heart
like the eye of a violet.

IV (LAWRENCE, 2002, p. 513)

I am not a mechanism, an assembly of various sections.
and it is not because the mechanism is working wrongly,
that I am ill.
I am ill because of wounds to the soul, to the deep emotional self
and the wounds to the soul take a long, long time, only
time can help
and patience, and a certain difficult repentance
long, difficult repentance, realization of life’s mistake, and the
freeing oneself
from the endless repetition of the mistake
which mankind at large has chosen to sanctify.

V (LAWRENCE, 2002, p. 519)

I have noticed that people who talk a lot about loyalty
are always themselves by nature disloyal
and they fear the come-back.

VI (LAWRENCE, 2002, p. 614)

Do you think it is easy to change?
Ah! It is very hard to change and be different.
it means passing through the waters os oblivion.

VIII (LAWRENCE, 2002, p. 500)

There are too many people on earth
insipid, unsalted, rabbity, endlessly hopping.
They nibble the face of the earth to a desert.

Pensando
(Johann G. M. Von Bremen: pintor alemão)

Pansies

I

Morrem moços os amados dos deuses.
Os deuses devem odiar quase todos os homens velhos de hoje;
os homens rançosos que não morrem.
Porque não os querem os deuses,
porque não os chamam os deuses
e os deixam criar ranço na terra?!
Todos esses velhos, presos à recusa de viver,
obedientes à letra da lei,
os deuses, que são vida, fluidez e movimento,
deixam-nos entregues à engrenagem suja do egoísmo
que gira sem parar sobre si mesma.
O inferno sobre a terra.

II

Não compreendo jamais quem se queixa de solidão.
Estar só é uma das maiores alegrias da vida.
Pensar por si, agir, olhar o mundo,
não ser interrompido nas relações com o fundo das coisas.

III

Nada resta por salvar, agora que tudo se perdeu.
A não ser um núcleo minúsculo de silêncio no coração,
como um olho de violeta.

IV

Eu não sou um mecanismo,
um conjunto de peças isoladas.
E não é porque a máquina não funciona que me sinto doente.
Se estou enfermo, as feridas da alma são causa,
as chagas do eu emotivo mais profundo.
E as feridas da alma são lentas, lentas, somente o tempo as cura,
o tempo e a paciência, e um certo arrependimento difícil,
um longo, difícil arrependimento.
É preciso entender que a vida se engana, e libertar-se
da eterna repetição do erro
que a humanidade inteira resolveu santificar.

V

Os que falam demais em lealdade
são eles próprios desleais
e se arreceiam do contragolpe.

VI

Será a vida uma luta? Será o longo combate?
Assim é. Luto sem cessar
porque a isso sou forçado.
No entanto, não me interesso pela guerra, pela luta, pelo combate
sou levado de roldão.

VII

Vocês pensam que é fácil mudar?
É muito difícil mudar, ser diferente.
Há que transpor o rio do esquecimento.

VIII

Há gente demais sobre a terra,
gente insípida, sem sal, proliferante...
E, sempre a saltitar,
roem o rosto do mundo
e dele fazem um deserto.

Referências:

Em Inglês

LAWRENCE, D. H. The complete poems of D. H. Lawrence. Introduction and note by David Ellis. Ware, EN: Wordsworth Edtions, 2002. (‘Wordsworth Poetry Library’)

Em Português

LAWRENCE, D. H. Pansies. Tradução de Sérgio Milliet. In: MILLIET, Sérgio (Seleção e Notas). Obras-primas da poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957. p. 285-287.