Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Charles Bukowski - pobreza

Eis aqui um poema de Bukowski com um andamento um pouco diferente dos que costumava redigir: revela-se-nos um poeta reflexivo, ponderando sobre as coisas que, porventura, valem a pena no curso de nossas vidas, coisas que nos fazem sentir que estamos vivos.

O título do poema – “Pobreza” – não chega a destoar em relação à média temática do escritor. Afinal, é nela que Bukowski submerge, “entre lojas de conveniência, gatos, lençóis, saliva, jornais, mulheres, portas e outros penduricalhos”, mas onde quer que se encontre, sente que em nenhum lugar esteja, de fato, vivo.

J.A.R. – H.C.

Charles Bukowski
(1920-1994)

poverty

it is the man you’ve never seen who
keeps you going,
the one who might arrive
someday.

he isn’t out on the streets or
in the buildings or in the
stadiums,
or if he’s there
I’ve missed him somehow.

he isn’t one of our presidents
or statesmen or actors.

I wonder if he’s there.

I walk down the streets
past drugstores and hospitals and
theatres and cafes
and I wonder if he is there.

I have looked almost half a century
and he has not been seen.

a living man, truly alive,
say when he brings his hands down
from lighting a cigarette
you see his eyes
like the eyes of a tiger staring past
into the wind.

but when the hands come down
it is always the
other eyes

that are there
always always.

and soon it will be too late for me
and I will have lived a life
with drugstores, cats, sheets, saliva,
newspapers, women, doors and other assortments,
but nowhere
a living man.

Loja de Conveniência
(Bob Dornberg: pintor norte-americano)

pobreza

é o homem que você nunca viu que
o mantém em movimento,
aquele que deve chegar
num dia incerto.

ele não vaga pelas ruas ou
pelos apartamentos ou
pelos estádios,
ou se ele andou por aí
de algum modo nos desencontramos.

ele não é um de nossos presidentes
não está entre os estadistas e os atores.

me pergunto se ele está por aí.

caminho pelas ruas
passo por lojas de conveniência e hospitais e
teatros e cafés
e me pergunto se ele não está ali.

já faz quase meio século que procuro
e ele ainda não foi visto.

um homem vivo, vivo de verdade,
revela quando traz suas mãos pendidas
por ter acendido um cigarro
você vê seus olhos
como os olhos de um tigre mirando o passado
enquanto o verão passa.

mas quando as mãos pendem
trata-se sempre dos
outros olhos
que estão lá
sempre sempre lá.

e logo será tarde demais para mim
e eu terei vivido uma vida
entre lojas de conveniência, gatos, lençóis, saliva,
jornais, mulheres, portas e outros penduricalhos,
mas em nenhum lugar
um homem vivo.

Referências:

Em Inglês

BUKOWSKI, Charles. poverty. In: __________. Burning in water, drowning in flame. Los Angeles, CA: Black Sparrow Press, 1974. p. 128-129.

Em Português

BUKOWSKI, Charles. pobreza. Tradução de Pedro Gonzaga. In: __________. Queimando na água, afogando-se na chama. Tradução de Pedro Gonzaga. 1. ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2016. p. 148-149. (Coleção “L&PM Pocket”; v. 1.211)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Hans Magnus Enzensberger - Por que os poetas mentem: motivos adicionais

A despeito do caráter lúdico do poema de Enzensberger, pode-se perceber que o poeta parece reconhecer que a história muito se assemelha a um relato ficcional, porque ela narra fatos ocorridos no passado, não atuais.

Explico-me melhor: uma história é sempre recontada por alguém, que apreende a seu modo os materiais narrativos da realidade e, de modo incidental, deliberado ou involuntário, omite, reinterpreta, faz recortes, remonta episódios que, em sua origem, pouco ou nada têm de conexos.

Assim, verdades ou mentiras derivam do grau de aderência das palavras ao objeto não linguístico da experiência. Quanto mais distanciadas estiverem as palavras daquilo que pretendem descrever no mundo empírico, tanto mais autônoma se torna a linguagem em relação a esse mundo. Esse é o pélago em que os poetas costumam navegar, o mar do fingimento, como diria Pessoa...

J.A.R. – H.C.

Hans Magnus Enzensberger
(n. 1929)

Weitere Gründe dafür,
daß die Dichter lügen

Weil der Augenblick,
in dem das Wort glücklich
ausgesprochen wird,
niemals der glückliche Augenblick ist.
Weil der Verdurstende seinen Durst
nicht über die Lippen bringt.
Weil im Munde der Arbeiterklasse
das Wort Arbeiterklasse nicht vorkommt.
Weil, wer verzweifelt,
nicht Lust hat, zu sagen:
“Ich bin ein Verzweifelnder.”
Weil Orgasmus und Orgasmus
nicht miteinander vereinbar sind.
Weil der Sterbende, statt zu behaupten:
“Ich sterbe jetzt” nur ein mattes Geräusch
vernehmen läßt,
das wir nicht verstehen.
Weil es die Lebenden sind,
die den Toten in den Ohren liegen
mit ihren Schreckensnachrichten.
Weil die Wärter zu spät kommen,
oder zu früh.
Weil es also ein anderer ist,
immer ein anderer,
der da redet,
und weil der,
von dem da die Rede ist,
schweigt.

O tema dos poetas
(John Callcott Horsley: pintor inglês)

Por que os poetas mentem:
motivos adicionais

Porque o momento
em que a palavra feliz
é dita
nunca é o momento da felicidade.
Porque o sedento não traz
aos lábios sua sede.
Porque pela boca da classe operária
não passa a expressão classe operária.
Porque quem se desespera
não tem vontade de dizer:
“Estou desesperado.”
Porque orgasmo e orgasmo
estão a mundos de distância.
Porque o moribundo, em vez de declarar
“estou morrendo”, estertora apenas um
gemido baixo
e, para nós, incompreensível.
Porque são os vivos
que enchem o ouvido dos mortos
com suas notícias atrozes.
Porque as palavras sempre chegam
tarde demais ou cedo demais.
Porque é um outro,
sempre um outro,
quem fala
e porque
aquele de quem se fala
silencia.

Referência:

ENZENSBERGER, Hans Magnus. Weitere gründe dafür, daß die gichter lügen / Por que os poetas mentem: motivos adicionais. Tradução de Nelson Ascher. In: ASCHER, Nelson (Tradução e Organização). Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1998. Em alemão: p. 314; em português: p. 315. (Coleção “Lazuli”)

domingo, 29 de janeiro de 2017

Czeslaw Milosz - À Senhora Professora em defesa da honra do gato e não só

Milosz, Nobel de Literatura em 1980, aborda neste seu poema a impropriedade de se outorgar aos animais os atributos da ação deliberadamente violenta, com valoração similar à aplicável aos seres humanos, conscientes do que fazem.

No domínio da natureza, até onde se sabe, valem as regras da cadeia alimentar, a qual, uma vez rompida, acaba por gerar desequilíbrios ecológicos: extingam-se todos os sapos e se verá o que há de acontecer com a população dos insetos. Acabem-se com os gatos e cobras e ter-se-á uma expansão da população de ratos. Crueldade nos animais? De fato, eles são indiferentes ao bem e ao mal. Caçam a presa para se alimentar... nada mais!

J.A.R. – H.C.

Czeslaw Milosz
(1911-2004)

Do Pani Profesor w obronie honoru kota
i nie tylko
(Z okazji artykułu “Przeciw okrucieństwu”
Marii Podrazy-Kwiatkowskiej)

Mój miły pomocnik, nieduży tygrysek,
Śpi słodko na biurku obok komputera
I nic nie wie, że Pani jego ród obraża.

Koty bawią się myszą czy półżywym kretem,
Myli się jednak Pani, to nie z okrucieństwa.
Po prostu widzą rzecz, która się rusza.

Bo jednak zważmy, że tylko świadomość
Umie na chwilę przenieść się w to Inne,
Współ-odczuć mękę i panikę myszy.

I tak jak kot, jest cała przyroda,
Obojętna niestety na zło i na dobro,
Obawiam się, że kryje się tutaj dylemat.

Historia naturalna ma swoje muzea.
Nie prowadźmy tam dzieci. Po co im potwory,
Ziemia gadów i płazów przez miliony lat?

Natura pożerająca, natura pożerana,
Dzień i noc czynna rzeźnia dymiąca od krwi.
I kto ją stworzył? Czyżby dobry bozia?

Tak, niewątpliwie, one są niewinne:
Pająki, modliszki, rekiny, pytony.
To tylko my mówimy: okrucieństwo.

Nasza świadomość i nasze sumienie
Samotne w bladym mrowisku galaktyk
Nadzieje pokładają w ludzkim Bogu.

Który nie może nie czuć i nie myśleć,
Który jest nam pokrewny i ciepłem i ruchem,
Bo Jemu, jak oznajmił, jesteśmy podobni.

Ale jeżeli tak, to lituje się
Nad każdą schwytaną myszą, skaleczonym ptakiem.
Wszechświat dla Niego jak Ukrzyżowanie.

Oto ile wynika z ataku na kota:
Teologiczny augustiański grymas,
Z którym chodzić po ziemi, wie Pani, jest trudno.

(1994)

Chuva, cidade, ele, ela e o gato...
(Justyna Kopania: artista polonesa)

À Senhora Professora em defesa da honra
do gato e não só
(Por ocasião do artigo “Contra a crueldade”
de Maria Podraza-Kwiatkowska)


Meu amável ajudante, pequeno tigrinho,
Dorme docemente sobre a mesa perto do computador
E sequer imagina que a Senhora está ofendendo sua linhagem.

Os gatos brincam com o rato ou a toupeira meio morta,
Mas a Senhora está enganada, não é por crueldade.
Eles simplesmente veem uma coisa que se mexe.

Pois é bom lembrar que só a consciência
Pode por um instante transferir-se para o Outro,
Com-partilhar a dor e o pânico do rato.

E assim como o gato, é toda a natureza,
Infelizmente indiferente ao mal e ao bem,
Receio que aqui se esconde um dilema.

A história natural tem seus museus.
Não levemos ali as crianças. Para que lhes mostrar os monstros,
A terra dos répteis e anfíbios por milhões de anos?

A natureza que devora, a natureza devorada,
Dia e noite aberto o matadouro de sangue.
E quem foi que o criou? Será um deus bonzinho?

Sim, sem dúvida, eles são inocentes:
As aranhas, os louva-a-deus, os tubarões, os pítons.
Só nós dizemos: crueldade.

O nosso saber e a nossa consciência
Solitários num pálido formigueiro de galáxias
Depositam suas esperanças num Deus humano.

Que não pode não sentir e não pensar,
Que nos é familiar, pelo calor e pelo movimento,
Porque a Ele, como declarou, somos semelhantes.

Mas sendo assim, ele se compadece
De cada rato pego, de cada pássaro ferido.
O universo é para Ele como a Crucificação.

Eis aí quanto resulta do ataque ao gato:
Um esgar teológico agostiniano,
Com o qual, a Senhora sabe, não é fácil andar na terra.

(1994)

Referência:

MILOSZ, Czeslaw. Do pani profesor w obronie honoru kota i nie tylko / À senhora professora em defesa da honra do gato e não só. Tradução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. In: __________. Não mais. Edição bilíngue. Seleção, tradução e introdução de Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. Brasília, DF: Editora da UnB, 2003. Em polonês: p. 104 e 106; em português: p. 105 e 107. (Coleção “Poetas do Mundo”)
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sábado, 28 de janeiro de 2017

Raul Bopp - Negro

Um poema que sumaria a saga do negro brasileiro, desde a África de suas origens até as senzalas da casa-grande. Um enredo que marca até hoje os seus descendentes, naquilo que não contam com igualdade de oportunidades para poderem progredir na vida.

Ou por outra: igualdade de oportunidades, sem igualdade no ponto de partida, torna-se um discurso vazio e hipócrita. Pois o governo privatizou a educação básica, deixando à míngua quem depende de escolas públicas do ensino fundamental e médio – de qualidade ultrainsatisfatória –, de forma que jamais os negros, a comporem a maioria dos pobres desta nação, chegarão em igualdade de condições no mercado de trabalho, quer público quer privado.

Por conseguinte, procuram-se negros na direção das empresas e empreendimentos brasileiros... São um infinitésimo percentual. Grassam eles nos grandes espaços urbanos favelizados das maiores capitais do país, conformando a paisagem indelével que os turistas vindos de outras paragens mais amenas são forçados a constatar de plano!

J.A.R. – H.C.

Raul Bopp
(1898-1984)

Negro

Pesa em teu sangue a voz de ignoradas origens.
As florestas guardaram na sombra o segredo da tua história.

A sua primeira inscrição em baixo-relevo
foi uma chicotada no lombo.

Um dia
atiraram-te no bojo de um navio negreiro.
E durante longas noites e noites
vieste escutando o rugido do mar
como um soluço no porão soturno.

O mar era um irmão da tua raça.

Uma madrugada
baixaram as velas do convés.
Havia uma nesga de terra e um porto.
Armazéns com depósitos de escravos
e a queixa dos teus irmãos amarrados em coleiras de ferro.

Principiou aí a sua história.

O resto,
o que ficou para trás,
o Congo, as florestas e o mar
continuam a doer na corda do urucungo. (*)

De: “Urucungo: poemas negros” (1932)

Capoeira
(Johann Moritz Rugendas: pintor alemão)

Nota:

(*) Instrumento musical africano.

Referência:

BOPP, Raul. Negro. In: __________. Seleta em prosa e verso. Organização, estudo e notas do Prof. Amariles Guimarães Hill. Rio de Janeiro, GB: Livraria José Olympio Editora; Brasília, DF: Instituto Nacional do Livro - Ministério da Educação e Cultura, 1975. p. 13. (Coleção “Brasil Moço”)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Miguel Reale - A Biblioteca

Miguel Reale, homem do Direito, da Filosofia e das Letras, em razão de seu ofício, possuía decerto uma vasta biblioteca. E é sobre ela que lança um olhar consternado, imaginando o seu destino depois que, neste mundo, já não estivesse.

Duas foram as imagens que se me mostraram indeléveis depois de lido o poema: o livro, de pé, como soldado montando guarda para a próxima consulta, e a profusão de  cupins, traças e baratas, rendilhando um poema sem poesia – neste caso, porque demarca a finitude de tudo quanto na terra existe. Afinal, nem mesmo a memória se estabelece no domínio da eternidade...

J.A.R. – H.C.

Miguel Reale
(1910-2006)

A Biblioteca

Morto, a biblioteca
projeta a sua imagem,
um livro fechado,
para sempre encerrado,
sem novos títulos ou capítulos,
mas com mensagens
a seus discípulos.

Já é outra a biblioteca,
sem vida interior,
na orfandade
de seu amor.

Obras a pouco e pouco coligidas,
gota a gota de amorosa escolha,
a existência toda resumida
em amareladas folhas
e, num instante,
a pena da saudade em cada estante.

Sobre a mesa um volume
com páginas marcadas,
feridas abertas,
sinais de não aproveitadas
descobertas.

Neste livro
com espanto
via-se um dia:
um poema pequenino
por encanto
descobria-se.

Neste outro, de sua lavra,
sentia o peso da palavra:
uma palavra a mais
uma palavra a menos
e outro teria sido o seu destino.

Mas não mais terá a dor
que o atormentava tanto,
remorso do não lido
ou treslido,
sem igual amor.

Madrugadas e noites lidas,
linha a linha,
linhas das palmas da mão
dirigidas para o incerto,
a partir da solidão.

Na sombra se oculta o exército
de cupins, traças e baratas,
roendo indiferentemente
livros de ciência e de filosofia,
de arte e de atas,
rendilhando todo um poema
sem poesia...

– Ar! Luz!
grita o sol vibrando na vidraça
mas é tarde, é muito tarde,
quase noite na biblioteca
que cheira a mofo e naftalina,
não tem cheiro de criança,
não tem cheiro de menina.
Dentro dela sós lembranças.

Passa o tempo e o livro fica
em fila, de pé,
como soldado montando guarda
ao que não é.

A biblioteca remanesce
soberana ao tempo que passa
e tudo que perece,
indiferente ao sol,
aqueça ou não a vidraça.

Chega a noite à biblioteca
e alça igual seu voo
o pássaro de Minerva.

Na Biblioteca
(John Watkins Chapman: pintor inglês)

Referência:

REALE, Miguel. Na biblioteca. In: CONGÍLIO, Mariazinha (Selecção e Coordenação). Antologia de poetas brasileiros. 1. ed. Lisboa, PT: Universitária Editora, 2000. p. 150-151.