Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

José Emilio Pacheco - Ao Término da Aula

Num de seus redutos preferenciais – a sala de aula –, a poesia se vê sufocada ante a falta de interesse acadêmico, e, ainda assim, resiste, como uma flor que pode retomar sua chama de dentro das páginas das obras em que inscrita.

As bibliotecas, ‘locus’ onde os livros têm seu primado, são vistas como claustros que ninguém se dá ao trabalho de visitá-los e, por isso, sem o compulsar das páginas de seus tomos, o que rola no ateneu são opiniões de enésima ordem.

J.A.R. – H.C.

José Emilio Pacheco
(1939-2014)

Al Terminar la Clase

Más temprano que tarde la poesia
llega a los claustros.
Bibliotecas que no consulta nadie,
opiniones de cuarta o quinta mano,
comentários triviales, haz de anécdotas
en el salón de clase
(auditório cautivo indiferente).
“Cultura” en fin y “tradición”.
Es triste.
Sin embargo la llama no se extingue.
Solo duerme,
prensada y seca flor en un libro,
que de repente
puede encenderse
viva.

En: “Irás y no Volverás” (1973)

Ruídos na Sala de Aula
(Rudolf Geyling: pintor austríaco)

Ao Término da Aula

Mais cedo que tarde, a poesia
chega aos claustros.
Bibliotecas que ninguém consulta,
opiniões de quarta ou quinta mão,
comentários triviais, feixe de anedotas
na sala de aula
(auditório cativo e indiferente)
“Cultura”, enfim, “tradição”.
É triste.
No entanto, a chama não se extingue.
Somente dorme,
prensada e seca flor num livro,
que, de repente,
pode acender-se
viva.

Em: “Irás e não Voltarás” (1973)

Referência:

PACHECO, José Emilio. Al terminar la clase. In: __________. Contraelegía. Introducción, edición e selección de Francisca Noguerol. 1. ed. Salamanca, ES: Ediciones Universidad de Salamanca, 2009. p. 191. (Biblioteca de América; v. 42)

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Cecília Meireles - Papéis

A poetisa relembra, nestes seus “Papéis”, os voos de imaginação experimentados, em especial, na infância, o modo intimista como já interpretava aqueles momentos, de uma vida que se iniciava e outras que se extinguiam para sempre.

Revela-se aí uma Cecília Meireles a abraçar o estilo confessional, ou melhor, de resgate da memória, em especial daqueles instantes que, inexplicavelmente, cada qual guarda fundo no coração. Em meio às suas ruminações, a poetisa se pergunta: “Mas por que sempre lembrar essas coisas longínquas?”.

J.A.R. – H.C.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Papéis

I

Naquele tempo, o que eu mais desejava era uma árvore.
A mangueira.
E minha avó plantou a mangueira no jardim.
Cresceu devagar, com dificuldade.
Sofria de uma doença que a envolvia,
de vez em quando parecia afogada numa teia de aranha,
como se fosse morrer.

Afinal, atingiu a altura da janela do quarto.
Nesse ano, minha avó morreu.
E eu, sentada à beira da cama,
via-a aparecer na janela.

II

Muitas histórias melancólicas envolvem as crianças.
Às vezes, eu estava brincando com os meus bonecos,
mas estava pensando no bastidor da mamãe,
com um bordado interrompido,
e em coisas antigas, que estavam por ali,
e que tinham vindo de casas acabadas,
de pessoas acabadas,
de um mundo acabado.
Era a minha família.

III

Meu avô, que não conheci,
morreu debaixo do cajueiro,
de repente.
Ao lado do manacá plantado por suas mãos.
Logo que um manacá floresce,
vejo esse avô que não conheci.

Um avô jovem, belo, de olhos verdes,
e as lágrimas de minha avó abraçada ao seu peito.
Seu peito, ela recordava,
era branco, firme, polido – um marfim.

IV

Minha infância foi sobre um velho tapete oriental.
Nele aprendi a beleza das cores.
Nele sonhei com as raízes do azul e do encarnado.
E sempre me pareceu que o desenho era uma escrita:
que o tapete falava coisas,
– eu é que ainda o não podia entender.

V

Mas por que sempre lembrar essas coisas longínquas?
A verdade, porém, é que há uns dias inesquecíveis,
uns fatos inesquecíveis, dentro de nós.
Tudo o mais, que vivemos, gira em redor deles.
Toda uma vida se reduz, afinal, a umas poucas emoções,
por muitos anos que vivamos,
apesar de viagens, experiências, realizações, sonhos, saber...
Vivemos tudo – o humano e universal –
nuns pequenos instantes, obscuros e essenciais.

Todos os dias assim, de chuvinha fina,
Penso em velhas cenas da infância:
a tarde em que comia um pedaço de maçã
e conheci o arco-íris;
o livro em que estudava francês,
com uma gravura de crianças felizes, que riam para o ar:
La pluie;
a minha solidão com tesouras, cola e cartolina:
“Brinquedos para os dias de chuva...”

Tudo isso vem à minha memória, como visitantes inesperados.
Interrompo o que estou fazendo, tenho uma pena imensa de mim.
Depois, penso em velhos poemas chineses, curtos e leves.

Sou como quem mira uma antiga coleção de cartões-postais.

Setembro, 1955

Em: “Dispersos” 

Adejo
(Bob Byerley: pintor norte-americano)

Referência:

MEIRELES, Cecília. Papéis. In: __________. Cecília de bolso: uma antologia poética. Organização e apresentação de Fabrício Carpinejar. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 166-169. (Coleção ‘L&PM Pocket; v. 700)

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Kay Ryan - Um Silêncio Palpável

O poeta distingue uma forma palpável de silêncio, cremoso, tipo látex, como uma espécie de luxo experimentado em sonhos. Um silêncio que se mescla moderadamente com porções de verde, advindas das árvores frequentadas por pássaros.

Sobressai no poema de Ryan a mistura iniludível de elementos sonoros – ou melhor, de sua postulada ausência –, com outros visuais, de forte impacto, pois quando o lemos, ficamos com a sensação remanente das cores em nossas retinas.

J.A.R. – H.C.

Kay Ryan
(n. 1945)

A Palpable Silence

What is as delightful
as a palpable silence,
a creamy latex of a
silence, stirrable
with a long stick. Such
a silence is particularly
thick at the bottom, a
very smooth lotion, like
good paint by the gallon.
This is a base silence,
colored only by addition,
say a small squeeze of
green when the bird sings
idly of trees he has
seen. It is a clean
silence, the kind that
does not divide us,
like dreams it is
viscous but like good dreams
where sweet things last and
last past credibility.
Even in the dream we know
it is a luxury.

A Casa Ensolarada
(Raynald Leclerc: pintor canadense)

Um Silêncio Palpável

O que é tão delicioso
quanto um palpável silêncio,
um látex cremoso de
silêncio, que se mescla
com uma haste longa?! Tal
silêncio é particularmente
espesso no fundo, uma
loção muito suave, como
boa tinta comercializada por galão.
Trata-se de um silêncio base,
apenas colorido pela adição,
digamos, de um pequeno gotejo de
verde quando um pássaro canta
indolentemente no alto das árvores
com que depara. É um silêncio
limpo, do tipo que
não nos divide,
viscoso como
os sonhos, mas como bons sonhos
nos quais as coisas doces subsistem
muito além da credibilidade.
Inclusive no sonho reconhecemos
que ele é um luxo.

Referência:

RYAN, Kay. A palpable silence. In: LINDNER, April (Ed.). Líneas conectadas: nueva poesía de los Estados Unidos. Edición bilingüe: Inglés - Español. 1st. ed. Louisville, KY: Sarabande Books, 2006. p. 2.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Du Fu - O Rio Sinuoso (1)

Um breve poema chinês, que é uma sensibilidade só: em interação com a natureza, o poeta percebe o fenecimento da beleza nas pétalas das flores que caem e, para atenuar a tristeza que lhe sobrevém, traga um pouco de vinho, porque é preciso se dar um pouco de prazer.

Du Fu deplora a fama, ao argumento de que ela imobiliza o corpo, ou melhor, faz o ser humano nela confiar e deixar de cumprir até o fim a sua missão. Não é mais possível viver de ilusões, poder-se-ia inferir de suas palavras.

J.A.R. – H.C.

Du Fu
(712 d.C. - 770 d.C.)

曲江二首(其一)

一片花飞减却春,
风飘万点正愁人。
且看欲尽花经眼,
厌伤多酒入唇。
江上小堂巢翡翠,
边高冢卧麒麟。
细推物理须行乐,
何用浮名绊此身。

Rio Sinuoso
(Margy Foertsch: pintora norte-americana)

O Rio Sinuoso

Uma pétala ao cair
encurta um pouco a beleza.
No vento, milhares delas flutuam,
e consternado fico.
Em vez de olhar as flores
que murcham diante de meus olhos,
prefiro levar o vinho aos lábios,
quando vem a tristeza

Em um pequeno quiosque
na beira do rio
aninham-se martins-pescadores.
Ao longo do parque,
diante dos altos túmulos,
desabaram os unicórnios.
Se observamos a lei das coisas,
sabemos que é preciso se dar prazer.
Por que o desejo de ser famoso
se a fama apenas imobiliza o corpo?

Referência:

FU, Du. 曲江二首(其一)/ O rio sinuoso (1). In: __________. Poemas clássicos chineses: Li Bai, Du Fu e Wang Wei. Edição bilíngue. Tradução e organização de Sérgio Capparelli e Sun Yuqi. Prefácio de Leonardo Fróes. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012. Em chinês: p. 124; em português: p. 125. (Coleção ‘L&PM Pocket; v. 1.048)

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Günter Grass - Transformação

É do Nobel de Literatura de 1999 o poema de hoje: Grass afirma a necessidade de sermos retirados de nossa zona de conforto para que possamos experimentar transformações significativas em nosso modo de ser, passando a compreender melhor qualquer coisa que se nos apresente, mesmos os fatos da natureza.

Com efeito, sentir-se incomodado desencadeia os mecanismos internos capazes de levar à solução dos dilemas quotidianos – isto se outro não for o recurso então empregado, vale dizer, o expediente empobrecedor associado à adoção de estratégias de fuga do problema...

J.A.R. – H.C.

Günter Grass
(1927-2015)

Wandlung

Plötzlich waren die Kirschen da,
obgleich ich vergessen hatte,
dass es Kirschen gibt
und verkünden liess:
Noch nie gab es Kirschen –
waren sie da, plötzlich und teuer.

Pflaumen fielen und trafen mich.
Doch wer da denkt,
ich wandelte mich,
weil etwas fiel und mich traf,
wurde noch nie von fallenden Pflaumen getroffen.

Erst als man Nüsse in meine Schuhe schüttete
und ich laufen musste,
weil die Kinder die Kerne wollten,
schrie ich nach Kirschen, wollt ich von Pflaumen
getroffen werden – und wandelte mich ein wenig.

Crianças Correndo
(Andrew Macara: pintor inglês)

Transformação

De repente, as cerejas estavam ali,
embora eu houvesse esquecido
que elas existem
e deixado de declarar:
Até agora jamais frutificaram cerejas –
elas estavam ali, subitâneas e custosas.

Ameixas caíram sobre mim.
Mas quem imagina que
fui eu transformado,
porque algo caiu e atingiu-me,
nunca foi atingido pela queda de ameixas.

Somente quando despejaram nozes em meus sapatos
e vi-me obrigado a correr,
porque as crianças desejavam as amêndoas,
Eu gritei para as cerejas, quis que as ameixas
me tocassem – e me transformei um pouco.

Referência:

GRASS, Günter. Wandlung. In: PLOTZ, Helen (Sel.). Poems from the german. Drawings by Ismar David. A Bilingual Edition: German - English. New York, NY: Thomas Y. Crowell Company, 1967. p. 6.

domingo, 25 de setembro de 2016

Alberto de Lacerda - To Night

O poeta nos revela que esta noite será uma daquelas em que ele se comportará horrivelmente, para ver se pode haver beleza ante o pavoroso e o atroz: espera-se que sua esquadra perca os sentidos com tanto álcool à disposição!

Não haverá mais poemas por ele escritos, tampouco cartas de amor – pois já se disse que são todas ridículas! –, senão apenas poemas chineses muito simples (seriam haicais?!), insuportáveis de tão belos. E mais: o poeta descaracterizará quaisquer rotas que convirjam em sua direção, pois já não espera que alguém entre inopinadamente em sua vida! Indiscutivelmente, será uma noite para não se esquecer!

J.A.R. – H.C.

Alberto de Lacerda
(1928-2007)

To Night

Esta noite vou embebedar os meus navios
Rasgar os meus poemas
E as minhas raras (raríssimas)
Cartas de amor

Esta noite vou ser horrível
Pior do que o costume
Vou desabobadar os céus da minha esperança
Viga por viga estrela por estrela

Esta noite vou embebedar os meus navios
Vou deixar de falar a imensa gente
Vou encontrar um sábio chinês
Que me recitará poemas muito simples
Insuportáveis de tão belos

Esta noite vou destruir mapas antigos
Abrir certas janelas e quebrar
A possibilidade de alguém mais entrar na minha vida

Esta noite vou pedir perdão aos meus amigos
E escrever uma última carta sem a mínima sombra de
sentimentalismo

Esta noite vou embebedar os meus navios

De: “Palácio” (1961)

A Balsa da Medusa
(Théodore Géricault: pintor francês)

Referência:

LACERDA, Alberto de. To night. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (Organização e Introdução). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro, RJ: Lacerda Editores, 1999. p. 197-198.

sábado, 24 de setembro de 2016

Vinicius de Moraes - A Vida Vivida

Como afirma Drummond no poema da postagem anterior, há um momento de tristeza em cada criador, quer seja ele o Eterno quer seja, v.g., o poeta, que, com suas palavras, busca externar ao conhecimento de todos, aquilo que lhe vai no interno, muitas vezes de difícil expressão por meio da linguagem.

Não fosse de tal modo, como interpretar a passagem do poema abaixo em que Vinicius afirma a perquirir: “O que sou eu senão Ele, o Deus em sofrimento”?! Afinal, para se fazer algo com beleza, ele próprio já afirmara alhures que é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um... samba, não!

J.A.R. – H.C.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

A Vida Vivida

Quem sou eu senão um grande sonho obscuro em face do Sonho
Senão uma grande angústia obscura em face da Angústia
Quem sou eu senão a imponderável árvore dentro da noite imóvel
E cujas presas remontam ao mais triste fundo da terra?

De que venho senão da eterna caminhada de uma sombra
Que se destrói à presença das fortes claridades
Mas em cujo rastro indelével repousa a face do mistério
E cuja forma é prodigiosa treva informe?

Que destino é o meu senão o de assistir ao meu Destino
Rio que sou em busca do mar que me apavora
Alma que sou clamando o desfalecimento
Carne que sou no âmago inútil da prece?

O que é a mulher em mim senão o Túmulo
O branco marco da minha rota peregrina
Aquela em cujos braços vou caminhando para a morte
Mas em cujos braços somente tenho vida?

O que é o meu Amor, ai de mim! senão a luz impossível
Senão a estrela parada num oceano de melancolia
O que me diz ele senão que é vã toda a palavra
Que não repousa no seio trágico do abismo?

O que é o meu Amor? senão o meu desejo iluminado
O meu infinito desejo de ser o que sou acima de mim mesmo
O meu eterno partir da minha vontade enorme de ficar
Peregrino, peregrino de um instante, peregrino de todos os instantes?

A quem respondo senão a ecos, a soluços, a lamentos
De vozes que morrem no fundo do meu prazer ou do meu tédio
A quem falo senão a multidões de símbolos errantes
Cuja tragédia efêmera nenhum espírito imagina?

Qual é o meu ideal senão fazer do céu poderoso a Língua
Da nuvem a Palavra imortal cheia de segredo
E do fundo do inferno delirantemente proclamá-los
Em Poesia que se derrame como sol ou como chuva?

O que é o meu ideal senão o Supremo Impossível
Aquele que é, só ele, o meu cuidado e o meu anelo
O que é ele em mim senão o meu desejo de encontrá-lo
E o encontrando, o meu medo de não o reconhecer?

O que sou eu senão Ele, o Deus em sofrimento
O temor imperceptível na voz portentosa do vento
O bater invisível de um coração no descampado...
O que sou eu senão Eu Mesmo em face de mim?

Rio de Janeiro (1938)

Triunfo de Galateia
(Andrea Casali: pintor italiano)

Referência:

MORAES, Vinicius de. A vida vivida. In: __________. Antologia poética. 14. Reimpressão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1992. p. 53-54.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Carlos Drummond de Andrade - Tristeza no Céu

Drummond expõe a sua própria tristeza com as coisas deste mundo na mente do Criador. Há uma dúvida profunda que o assola, quando lhe sobrevêm questionamentos sobre o que lhe teria levado a criar tudo quanto existe.

Parece-lhe que mesmo as boas ideias, como a graça, a eternidade e o amor, não são suficientes para justificar a eclosão do gênero humano: não fosse tal motivo, qual seria então a explicação para tamanha aflição divina?!

J.A.R. – H.C.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Tristeza no Céu

No céu também há uma hora melancólica.
Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.
Por que fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.

Os anjos olham-no com reprovação,
e plumas caem.

Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor
caem, são plumas.

Outra pluma, o céu se desfaz.
Tão manso, nenhum fragor denuncia
o momento entre tudo e nada,
ou seja, a tristeza de Deus

Tristeza
(Elizabeth Dobbs: pintora norte-americana)

Referência:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Tristeza no céu. In: __________. Antologia poética: organizada pelo autor. 48. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2001. p. 275.