Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 31 de março de 2016

Stéphane Mallarmé - A Tumba de Edgar Poe

Um poema de um grande poeta francês, Mallarmé, dedicado à memória de outro grande poeta, no caso norte-americano, Poe. Trata-se, de fato, de uma contribuição de Mallarmé ao volume organizado por Sara Sigourney Rice, com aportes de poetas de todo o mundo, em homenagem ao cinquentenário da morte de Allan Poe.

 

Ainda que a presença da morte seja uma constante na poesia de Poe – e isso tenha, de certo modo, assustado os seus contemporâneos –, Mallarmé, àquela altura, já previa que a reputação de Poe, mesmo assim, perduraria no futuro.

 

J.A.R. – H.C.

 

Stéphane Mallarmé

(1842-1898)

 

Le Tombeau d’Edgar Poe

 

Tel qu’en Lui-même enfin l’éternité le change,

Le Poète suscite avec un glaive nu

Son siècle épouvanté de n’avoir pas connu

Que Ia mort triomphait dans cette voix étrange!

 

Eux, comme un vil sursaut d’hydre oyant jadis l’ange

Donner un sens plus pur aux mots de Ia tribu,

Proclamèrent três haut le sortilège bu

Dans le flot sans honneur de quelque noir mélange.

 

Du sol et de Ia nue hostiles, ô grief!

Si notre idée avec ne sculpte un bas-relief

Dont Ia tombe de Poe éblouissante s’orne,

 

Calme bloc ici-bas chu d’un desastre obscur,

Que ce granit du moins montre à jamais sa borne

Aux noirs vols du Blasphème épars dans le futur.

 

(1876)

 

Lápide para Poe em Baltimore (EUA)

 

A Tumba de Edgar Poe

 

Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia,

O Poeta suscita com o gládio erguido

Seu século espantado por não ter sabido

Que nessa estranha voz a morte se insurgia!

 

Vil sobressalto de hidra ante o anjo que urgia

Um sentido mais puro às palavras da tribo,

Proclamaram bem alto o sortilégio atribuído

À onda sem honra de uma negra orgia.

 

Do solo e céu hostis, ó dor! Se o que descrevo –

A ideia sob – não esculpir baixo-relevo

Que ao túmulo de Poe luminescente indique,

 

Calmo bloco caído de um desastre obscuro,

Que este granito ao menos seja eterno dique

Aos voos da Blasfêmia esparsos no futuro.

 

(1876)

 

Referência:

 

MALLARMÉ, Stéphane. Le tombeau d’Edgar Poe / A tumba de Edgar Poe. Tradução de Augusto de Campos. In: __________. Mallarmé. Traduções de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Edição bilíngue. São Paulo, SP: Edusp & Perspectiva, 1975. Em francês: p. 66; em português: p. 67. (Coleção ‘Signos’, v. 2)

quarta-feira, 30 de março de 2016

Jean-Nicolas Arthur Rimbaud - Meninos de Rua

Para suprir lastimável lacuna do blog em relação a esse reputado poeta francês, trazemos um poema de Arthur Rimbaud, criação à parte de seu famoso “Une Saison en Enfer” (“Uma Temporada no Inferno”).

Mas o seu efeito não é tão diferente em relação às durezas da vida: reporta-se o poema a garotos que brincam na rua, ao tempo em que se põem à espera de uma fornada de pão, na expectativa da boa vontade do padeiro para abreviar a fome!

J.A.R. – H.C.

Arthur Rimbaud
(1854-1891)

Les Effarés

Noirs dans la neige et dans la brume,
Au grand soupirail qui s’allume,
Leurs culs en rond,

A genoux, cinq petits, − misère! −
Regardent le Boulanger faire
Le lourd pain blond.

Ils voient le fort bras blanc qui tourne
La pâte grise et qui l’enfourne
Dans un trou clair.

Ils écoutent le bon pain cuire.
Le Boulanger au gras sourire
Grogne un vieil air.

Ils sont blottis, pas un ne bouge,
Au souffle du soupirail rouge
Chaud comme un sein.

Quand pour quelque médianoche,
Façonné comme une brioche
On sort le pain,

Quand, sous les poutres enfumées,
Chantent les croûtes parfumées
Et les grillons,

Que ce trou chaud souffle la vie,
Ils ont leur âme si ravie
Sous leurs haillons,

Ils se ressentent si bien vivre,
Les pauvres Jésus pleins de givre,
Qu’ils sont là tous,

Collant leurs petits museaux roses
Au treillage, grognant des choses
Entre les trous,

Tout bêtes, faisant leurs prières
Et repliés vers ces lumières
Du ciel rouvert,

Si fort qu’ils crèvent leur culotte
Et que leur chemise tremblote
Au vent d’hiver.

Meninos mendigos comendo uvas e melões
(Bartolomé Esteban Murillo: pintor espanhol)

Meninos de Rua

Negros na neve e na penumbra,
Junto ao respiro que os alumbra,
  De joelhos, são

Cinco meninos – Cristo! – ao ar,
Vendo o Padeiro preparar
  O louro pão.

Um braço forte e branco esconde
A massa num buraco donde
  Vem um clarão.

O Padeiro é calmo e preciso;
Tem nos lábios gordo sorriso,
  Velha canção.

Agachados, já a noite em meio,
Ao sopro quente como um seio
  Ou um coração

Que vem do forno se elevando,
Ei-los, imóveis, escutando
  Cozer o pão.

E quando, enfim, noite alta e feia,
Para alguma tardia ceia
  Tira-se o pão,

E sob as traves enfumadas
Cantam as côdeas perfumadas
  Tenra canção,

Nesse quente sopro de vida
A sua alminha embevecida
  Sente-se alçar

Dentre os farrapos, leve, leve,
Pobres Jesus cheios de neve;
  E a suspirar,

Colando os míseros rostinhos
À grade, entre finos gritinhos,
  Por contemplar

O céu que do fundo os aquece,
Debruçam-se sobre ele em prece,
  Com tanto ansiar

Que rasgam das calças o zuarte,
E as camisas, como estandarte,
  Se estiram no ar.

Referência:

RIMBAUD, Jean-Nicolas Arthur. Les effarés / Meninos de rua. Tradução de Anderson Braga Horta. In: HORTA, Anderson Braga. Traduzir poesia. Brasília, DF: Thesaurus, 2004. Em francês: p. 238 e 240; em português: p. 239 e 241.

terça-feira, 29 de março de 2016

Jorge Luis Borges - Uma Bússola

Borges é sempre uma referência: não sem motivo sempre voltamos aos seus escritos, seus poemas, invariavelmente pejados de erudição e de sabedoria de vida, num texto com latentes inflexões sobre a virtualidade das experiências vividas.

O poema que escolhemos como objeto desta postagem – “Una Brújula” (“Uma Bússola”) – foi objeto de comento por parte do também erudito crítico George Steiner, nos seguintes termos, suprimidas, por conveniência, as notas de rodapé:

“Labirintos, ruínas circulares, galerias, Babel (ou Babilônia) são constantes na arte do nosso terceiro cabalista. Podemos localizar na poesia e na ficção de Borges cada um dos motivos presentes na mística linguística dos cabalistas e gnósticos: a imagem do mundo como uma concatenação de sílabas secretas, a noção de um idioma absoluto ou de uma letra cósmica – alfa e álefe – que subjaz ao tecido dilacerado das línguas humanas, a suposição de que a totalidade do conhecimento e da experiência está prefigurada num último tomo contendo todas as permutações imagináveis para o alfabeto. Borges leva adiante a crença oculta de que a estrutura do tempo e do espaço ordinariamente percebidos se entrecruza com cosmologias alternativas, com realidades consistentes e multiformes nascidas de nossa fala e das liberadas energias do pensamento. A lógica de suas fábulas se sustenta numa recusa da causalidade normal. Uma especulação gnóstica e maniqueísta (a palavra tem em si uma ação de espelhos) dá a Borges o tropo crucial de um mundo ao contrário. Correntes contrárias de tempo e narração sopram como altos e silentes ventos através de nosso habitat instável e em si talvez apenas conjectural. Nenhum poeta imaginou com mais densidade de vida a possibilidade de que nossa existência esteja sendo sonhada em outro lugar, de que somos a mera figura de um dizer alheio, movendo-se ruidosamente em direção ao fechamento daquela enunciação única imaginavelmente vasta, na qual Jakob Böhme ouvia o som do Logos (STEINER, 2005, p. 94-95).

P.s.: A tradução do inglês para o português, de um poema que, no original, foi escrito em espanhol, implicou que, no presente caso, o título se tornasse “Compasso” na versão para o livro de Steiner, uma transcrição indevida para “Una Brújula”, tudo porque “Bússola” em inglês se traduz como “Compass”...

J.A.R. – H.C.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)

Una Brújula

 A Esther Zemboráin de Torres

Todas las cosas son palabras del
Idioma en que Alguien o Algo, noche y día,
Escribe esa infinita algarabía
Que es la historia del mundo. En su tropel

Pasan Cartago y Roma, yo, tú, él,
Mi vida que no entiendo, esta agonía
De ser enigma, azar, criptografía
Y toda la discordia de Babel.

Detrás del nombre hay lo que no se nombra;
Hoy he sentido gravitar su sombra
En esta aguja azul, lúcida y leve,

Que hacia el confín de un mar tiende su empeño,
Con algo de reloj visto en un sueño
Y algo de ave dormida que se mueve.

Bússola e Monóculo
(Jaime Haney: artista norte-americana)

Uma Bússola

 A Esther Zemboráin de Torres

Todas as coisas são palavras do
Idioma em que Alguém ou Algo, noite e dia,
Escreve essa infinita algaravia
Que é a história do mundo. Em seu tropel

Passam Cartago e Roma, eu, tu, ele,
Minha vida que não entendo, esta agonia
De ser enigma, azar, criptografia
E toda a discórdia de Babel.

Por trás do nome há o que não se nomeia;
Hoje senti gravitar sua sombra
Nesta agulha azul, lúcida e leve,

Que até o confim de um mar estende seus esforços,
Com algo de relógio visto em um sonho
E algo de ave dormida que se move.

Referências:

BORGES, Jorge Luis. Una brújula. In: __________. Obras completas: El otro, el mismo. v. II. Buenos Aires, AR: Emecé, 1989. p. 253.

STEINER, George. Depois de Babel: questões de linguagem e tradução. Tradução de Carlos Alberto Faraco. Curitiba, PR: Editora da UFPR, 2005.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Conde de Lautréamont - Elogio à Matemática

Compulsando o clássico livro “Cantos de Maldoror”, do epigrafado poeta uruguaio que viveu na França, despertou-me a atenção a passagem abaixo: um longo panegírico às ciências matemáticas, naquilo que elas têm de mais axiomático, nomeadamente, a lógica e a objetividade.

E o que mais sobressai no texto de Lautréamont é exatamente a mescla das marcantes características dos ramos da matemática – como a álgebra, a aritmética e a geometria –, a um imaginoso e onírico discurso, que tem espaço, inclusive, para fazer menção às cifras cabalísticas subjacentes à ordem do mundo...

J.A.R. – H.C.

Conde de Lautréamont
(Isidore Lucien Ducasse)
(1846-1870)

Cantos de Maldoror
(Canto Segundo - Excerto)

Ó matemáticas severas, não vos esqueci, desde que vossas sábias lições, mais doces que o mel, infiltraram-se no meu coração, qual onda refrescante. Aspirava instintivamente, desde o berço, a beber em vossa fonte, mais antiga que o sol, e continuo ainda a percorrer o piso sagrado de vosso templo solene, eu, o mais fiel de vossos iniciados. Havia qualquer coisa de vago no meu espírito, um não sei quê espesso como a fumaça; mas soube transpor religiosamente os degraus que levam a vosso altar, e afugentastes esse véu escuro, assim como o vento empurra uma tempestade. Colocastes, em seu lugar, uma excessiva frieza, uma prudência consumada, e uma lógica implacável. Com a ajuda de vosso leite fortificante, minha inteligência desenvolveu-se rapidamente, tomando proporções imensas, em meio a essa claridade encantadora com que presenteais, com prodigalidade, aqueles que vos amam de um amor sincero. Aritmética! álgebra! geometria! trindade grandiosa! triângulo luminoso! Quem vos desconhece é um insensato. Mereceria a provação dos maiores suplícios; pois mostra um desprezo cego em sua ignorante apatia; mas quem vos conhece e vos aprecia nada quer dos bens terrestres; contenta-se com vossos prazeres mágicos; e, carregado por vossas asas sombrias, deseja apenas levantar-se, com um voo ligeiro, construindo uma hélice ascendente, rumo à borda esférica do céu. A terra só lhe mostra ilusões e fantasmagorias morais; mas vós, matemáticas concisas, pelos encadeamentos rigorosos de vossas proposições tenazes e a constância das vossas leis de ferro, fazeis brilhar, aos olhos deslumbrados, um reflexo poderoso dessa verdade suprema na qual se percebe a marca de uma ordem do universo. Mas a ordem que vos rodeia, representada principalmente pela regularidade perfeita do quadrado, o amigo de Pitágoras, é maior ainda; pois o Todo-Poderoso revelou-se completamente, ele e seus atributos, no trabalho memorável que consiste em fazer sair das entranhas do caos vossos tesouros de teoremas e vossos magníficos esplendores. Nas eras antigas e nos tempos modernos, mais de uma grande imaginação humana viu seu gênio espantar-se, diante de vossas figuras simbólicas traçadas sobre um papel ardente, qual outros tantos sinais misteriosos, que vivem de um hálito latente, que não são compreendidos pela vulgaridade profana, revelação estrepitosa de axiomas e hieróglifos eternos, que existiram antes do universo e se manterão depois dele. E ele se interroga, debruçado diante do precipício de um ponto de interrogação fatal, como é possível que as matemáticas contenham grandezas tão imponentes e tanta verdade incontestável, enquanto, ao compará-las com o homem, só encontra neste último o falso orgulho e a mentira. Então, esse espírito superior, entristecido, ao qual a nobre familiaridade de vossos conselhos faz sentir com maior intensidade a pequenez da humanidade, e sua incomparável loucura, mergulha a cabeça embranquecida na mão descarnada e permanece absorvido em meditações sobrenaturais. Inclina seu joelho à vossa frente, e sua veneração presta homenagem ao vosso rosto divino, como à própria imagem do Todo-Poderoso. Na minha infância, aparecestes, uma noite de maio, ao clarão da lua, sobre uma planície verdejante, às margens de um límpido regato, as três iguais em graça e pudor, as três cheias de majestade, como rainhas. Traçastes alguns passos na minha direção, com vosso longo manto, flutuando como um vapor, e me atraístes para vossos altivos seios, como se eu fosse um filho abençoado. E foi então que acorri apressadamente, as mãos crispadas sobre vosso alvo pescoço. Alimentei-me, com reconhecimento, de vosso maná fecundo, e senti que a humanidade crescia em mim, e se tornava melhor. Desde então, ó deusas rivais, nunca mais vos abandonei. Desde então, quantos projetos enérgicos, quantas simpatias, que acreditava gravadas nas páginas de meu coração, como em mármore, não foram apagando lentamente, do meu raciocínio desenganado, suas linhas configurativas, como a aurora nascente que apaga a sombra da noite! Desde então, vi a morte, na intenção, visível a olho nu, de povoar os túmulos, devastar os campos de batalha, alimentada pelo sangue humano, e fazer crescer flores matinais no meio das ossadas fúnebres. Desde então, assisti as revoluções do nosso planeta; os tremores de terra, os vulcões, com sua lava ardente, o simum dos desertos e os naufrágios da tempestade tiveram minha presença como espectador impassível. Desde então, vi inumeráveis gerações humanas levantarem, pela manha, suas asas e seus olhos, em direção ao espaço, com o prazer inexperiente da crisálida que saúda sua verdadeira metamorfose, e morrerem ao entardecer, antes do pôr do sol, a cabeça curvada, como flores fanadas balançadas pelo soprar lamentoso do vento. Vós, porém, permaneceis sempre as mesmas. Nenhuma mudança, nenhum ar empesteado roça os rochedos escarpados e os imensos vales de vossa identidade. Vossas pirâmides modestas durarão muito mais que as pirâmides do Egito, formigueiros levantados pela estupidez e pela escravidão. O fim dos séculos ainda verá, de pé sobre as ruínas dos tempos, vossas cifras cabalísticas, vossas equações lacônicas, e vossas linhas esculturais, repousando à direita vingadora do Todo-Poderoso, quando as estrelas mergulharem com desespero, como trombas, na eternidade de uma noite horrível e universal, enquanto a humanidade, contorcendo-se, tentar prestar contas no Juízo Final. Obrigado, pelos inumeráveis serviços que me prestastes. Obrigado, pelas estranhas qualidades com que enriquecestes minha inteligência. Sem vós, na minha luta contra o homem, eu poderia talvez ser derrotado. Sem vós, poderia ter rolado na sujeira e abraçado a poeira dos pés deles. Sem vós, com uma pérfida garra, teriam penetrado minha carne e meus ossos. Mas permaneci em guarda como um atleta experimentado. Vós me destes a frieza que surge das vossas concepções sublimes, isentas de paixões. Servi-me dela para recusar com desprezo os prazeres efêmeros de minha curta viagem e para devolver, da minha porta, as oferendas simpáticas, mas ilusórias, dos meus semelhantes. Vós me destes a prudência constante que se decifra a cada passo em vossos métodos admiráveis de análise, síntese e dedução. Servi-me dela para derrotar as artimanhas perniciosas do meu inimigo mortal, para atacar, por minha vez, com destreza, e mergulhar, nas vísceras do homem, um punhal agudo que permanecerá para sempre enfiado no seu corpo. Porque essa é uma ferida da qual ele não se curará. Vós me destes a lógica, que é como a essência dos vossos ensinamentos cheios de sabedoria; com seus silogismos, cujo labirinto complicado me é cada vez mais compreensível, minha inteligência viu duplicarem suas forças audaciosas. Por meio desse auxiliar terrível, descobri na humanidade que nada rumo às profundezas, diante dos escolhos do ódio, a maldade negra e horripilante, que crescia em meio a miasmas deletérios, admirando seu próprio ventre. Antes de mais nada, descobri, nas trevas de suas entranhas, o vício nefasto, o mal! superior nele ao bem. Com esta arma envenenada que vós me concedestes, fiz descer de seu pedestal, construído pela covardia do homem, o próprio Criador! Rilhava os dentes, enquanto sofria ignominioso insulto; pois tinha como adversário alguém mais forte do que ele. Porém deixá-lo-ei de lado, como um pacote de trapos, para abaixar meu voo... O pensador Descartes fazia, um dia, a reflexão de nada sólido ter sido construído sobre vós. É um modo engenhoso de lazer com que se entenda que o primeiro recém-chegado jamais poderia descobrir imediatamente vosso valor inestimável. Com efeito, que pode haver de mais sólido que as três qualidades principais já nomeadas, elevando-se, entrelaçadas como uma corda única, sobre o píncaro augusto de vossa arquitetura colossal? Monumento que cresce sem cessar em quotidianas descobertas, em vossas minas de diamantes, e explorações científicas, em vossos soberbos domínios. Ó matemáticas santas, serieis capazes, por vosso perpétuo comércio, de consolar o restante dos meus dias da maldade do homem e da injustiça do Grande-Todo!

O Matemático
(Paul Hartal: pintor e poeta canadense)

Referência:

LAUTRÉAMONT, Conde de. Canto segundo (excerto). In: __________. Cantos de Maldoror. Tradução e prefácio de Claudio Willer. São Paulo, SP: Vertente, 1970. p. 74-79.

domingo, 27 de março de 2016

Bertolt Brecht - A Emigração dos Poetas

O poeta parece estar vaticinado a ter uma vida de exílio: Platão, por exemplo, deixou-o bem distante do seu projeto de República. Num salto de mais de dois milênios, já no século XX, o alemão Brecht sumaria algumas histórias de exílio ocorridas com poetas de diversas nacionalidades...

E como se fosse um escárnio, conta sobre a sua própria história de exílio: o poema abaixo, pertencente à sua fase criativa que vai de 1938 a 1941, relembra que, perseguido pelos nazistas, teve que se exilar, fixando-se primeiramente na Suíça, depois em Paris, logo após na Dinamarca. Mais tarde, com a invasão da Dinamarca pelos alemães, partiu para Nova York, em 1941.

J.A.R. – H.C.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

A Emigração dos Poetas

Homero não tinha morada
E Dante teve que deixar a sua.
Li-Po e Lu-Tu andaram por guerras civis
Que tragaram 30 milhões de pessoas
Eurípides foi ameaçado com processos
E Shakespeare, moribundo, foi impedido de falar.
Não apenas a Musa, também a polícia
Visitou François Villon.
Conhecido como “o Amado”
Lucrécio foi para o exílio.
Também Heine, e assim também
Brecht, que buscou refúgio
Sob o tecto de palha dinamarquês.

Dante no Exílio
(Domenico Peterlini: pintor italiano)

Referência:

BRECHT, Bertolt. A emigração dos poetas. In: __________. Poemas: 1913-1956. 5. ed. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Editora 34, 2000. p. 121.

sábado, 26 de março de 2016

H.D. - Canção

Este poema da norte-americana Hilda Doolittle, com versos sugestivos de camadas sucessivas, lembra muito as composições da poetisa grega Safo: as imagens retratam um certo pendor ao lebianismo.

Aliás, grande parte da obra da poetisa retrata a sua visão de mundo a partir de uma perspectiva feminista, plena de questionamentos sobre as identidades de gênero, muito embora no poema ora transcrito sobressaia ainda uma sensualidade de conteúdo austero, com uma dimensão erótica algo reprimida.

J.A.R. – H.C.

H.D. − Hilda Doolittle
(1886-1961)

Song

You are as gold
as the half-ripe grain
that merges to gold again,
as white as the white rain
that beats through
the half-opened flowers
of the great flower tufts
thick on the black limbs
of an Illyrian apple bough.

Can honey distill such fragrance
as your bright hair −
for your face is as fair as rain,
yet as rain that lies clear
on white honey-comb,
lends radiance to the white wax,
so your hair on your brow
casts light for a shadow.

Cabine Telefônica na Chuva
(Francis Hamel: pintor inglês)

Canção

Você é como ouro
como um grão meio maduro
que se funde ao ouro novamente,
tão nívea quanto a branca chuva
a agitar intensamente
as flores entreabertas
dos grandes tufos de flores
adensados nas copas negras
de um ramo de macieira ilíria.

Pode o mel destilar tal fragrância
tanto quanto o seu brilhante cabelo –
pois sua face é tão bela quanto a chuva,
porém como a chuva que irrompe livre
sobre o favo de mel branco,
ela empresta brilho à alva cera,
para que o cabelo em sua testa
lance luz a uma sombra.

Referência:

H.D. Song. In: BENÉT, William Rose; AIKEN, Conrad (Eds.). An anthology of famous english and american poetry. New York, NY: Random House Inc., 1945. p. 814. (‘The Modern Library’)

sexta-feira, 25 de março de 2016

Alphonsus de Guimaraens - Sexta-feira Santa

Relembrando o feriado santo de hoje, Alphonsus de Guimaraens, um dos grandes poetas do simbolismo brasileiro, demonstra a sua perícia na elaboração deste soneto, diretamente associado ao ambiente em que se passa a ação: câmara ardente, peristilo, portas de catedral, sexta-feira-santa...

A grandeza do poema se concentra exatamente nos recursos de sinestesia – tão caros à poesia simbolista – empregados em seus versos: as vozes a cantar junto aos violões, a visão do altar pelos crentes, o perfume que se espalha, todo o roxo que recobre o ambiente.

Ao descrever com tanta propriedade os elementos religiosos, parece-nos que Guimaraens manteve relação bastante próxima com as instituições católicas, seus textos canônicos e convenções.

J.A.R. – H.C.

Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921)

Portas de catedral em Sexta-feira Santa

Portas de catedral em Sexta-feira Santa,
Grandes olhos cristãos piedosamente erguidos
Para o Altar onde a Glória imorredoura canta...
Brandos violões, brandos violinos dos sentidos:

Campo-santo onde flore a imarcescível planta
Do Amor que espera sempre os beijos prometidos,
E na hora vesperal, quando o luar se levanta,
Perfume para o olfato e som para os ouvidos:

Torres de eremitério onde os dobres dos sinos
Parecem prolongar um réquiem surdo e frouxo,
Um responso de morte acompanhado de hinos:

Grandes olhos cristãos de olheiras de veludo,
Altares quaresmais enfeitados de roxo,
Benditos para sempre Onde revive tudo!

De: “Câmara Ardente” (Perystilum) (1899)

Interior da Igreja de
Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto (MG),
cidade natal do poeta

Referência:

GUIMARAENS, Alphonsus. Portas de catedral em sexta-feira santa. In: __________. Cantos de amor, salmos de prece: poesias escolhidas. Estudo crítico de Henriqueta Lisboa. Rio de Janeiro, RJ: Cia. José Aguilar Editora; Brasília, DF: Instituto Nacional do Livro, 1972. p. 105 (“Biblioteca Manancial”, n. 6).

quinta-feira, 24 de março de 2016

Richard Wilbur - O Belo se Transforma

A beleza, como quase tudo na vida, é contingente, passageira, instável. Mas mesmo em sua mutabilidade, há nela certo grau de permanência, como no caso das belezas naturais, que finitas no tempo, propagam-se por reprodução e se estendem para muito além do interregno pelo qual perdura a vida dos seres individuais.

E, por isso, a beleza se transforma de realidade em realidade, incorporando novos conceitos, como no caso da arte, já que produto de um ser cuja natureza prima pela diversidade, pela detenção de uma alma camaleônica, prismática, nuançada, que se recusa a ceder a interpretações definitivas.

J.A.R. – H.C.

Richard Wilbur
(n. 1921)

The Beautiful Changes

One wading a Fall meadow finds on all sides  
The Queen Anne’s Lace lying like lilies
On water; it glides
So from the walker, it turns
Dry grass to a lake, as the slightest shade of you  
Valleys my mind in fabulous blue Lucernes.

The beautiful changes as a forest is changed  
By a chameleon’s tuning his skin to it;  
As a mantis, arranged
On a green leaf, grows
Into it, makes the leaf leafier, and proves  
Any greenness is deeper than anyone knows.

Your hands hold roses always in a way that says  
They are not only yours; the beautiful changes  
In such kind ways,  
Wishing ever to sunder
Things and things’ selves for a second finding, to lose  
For a moment all that it touches back to wonder.

Água Encantada
(Ann Marie Bone: artista inglesa)

O Belo se Transforma

Quem atravessa uma campina outonal, em toda parte,
Encontra as rendas da rainha Ana: – lírios
Sobre a água: magia e arte
Que ao caminhante fazem transformar
A relva seca em lago, como tua sombra mínima
Aplaina minha alma de azul luzerna.

O belo se transforma como a floresta
Que um camaleão altera a ela adaptando a pele;
Como o louva-a-deus que se assesta
Numa folha verde e nela se invagina
Tanto que mais enfolhece a folha e prova
Que o verdor é maior do que se imagina.

Tuas mãos seguram rosas como dizendo, eloquentes,
Que as rosas não são só tuas; o belo se transforma
Tão delicadamente
Procurando a partilha
Das coisas, da alma das coisas (para achá-las de novo)
Que, por momentos, aquilo que se toca, foge – de volta
à Maravilha.

Referência:

WILBER, Richard. The beautiful changes / O belo se transforma. Tradução de Jorge Wanderley. In: KEYS, Kerry Shawn (Ed.). Quingumbo: new north american poetry / nova poesia norte-americana. Antologia bilíngue. São Paulo, SP: Escrita, 1980. Em inglês: p. 54; em português: p. 55.