Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 30 de junho de 2015

Marina Tzvietáieva - À Vida

Marina Tzvietáieva (“Tsvetáeva” nas traduções de Veronica Filíppovna) retorna a este blog por meio de um poema que bem sublinha o seu estado de espírito: “Não colherás viva minha alma”, afirma, como se estivesse prevendo o seu fatídico destino.

Um adendo: junto à tradução de Augusto de Campos não consta o poema em sua escrita original. Por tal motivo, apresento-o em russo, como consignado no ‘site’ dedicado à poetisa na internet, cujo endereço oferecemos no ‘hiperlink’ fixado no título do poema.

J.A.R. – H.C.

Marina Tzvietáieva
(1892-1941)


Не возьмешь моего румянца —
Сильного — как разливы рек!
Ты охотник, но я не дамся,
Ты погоня, но я есмь бег.

Не возьмешь мою душу живу!
Та́к, на полном скаку погонь
Пригибающийся — и жилу
Перекусывающий конь

Аравийский.

25 декабря 1924

A Vida de um Caçador: Um Tenso Apuro
Arthur Fitzwilliam Tait: pintor anglo-americano

À Vida

Não colherás no meu rosto sem ruga
A cor, violenta correnteza.
És caçadora – eu não sou presa.
És a perseguição – eu sou a fuga.

Não colherás viva minha alma!
Acossado, em pleno tropel,
Arqueia o pescoço e rasga
A veia com os dentes, o corcel

Árabe.

25 de dezembro de 1924

Referência:

TZVIETÁIEVA, Marina. À vida. In: CAMPOS, Augusto de (seleção e tradução). Poesia da recusa. São Paulo, SP: Perspectiva, 2006. p. 157. (‘Signos’, n. 42)

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Carlos Nejar - Livro do Sol (Trechos I e II)

Num misto de reflexão sobre as filigranas do ser e as vicissitudes que as circunstâncias da vida nos trazem, tudo sob a onipresente intuição pessoana – afinal, quem, lendo o poema que abaixo se transcreve, não se lembrará desta famosa passagem de Pessoa?: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” –, Nejar parece contemplar a sua própria existência de uma mirada, como diríamos?, meio desconfortável.

Ou não: ensopado pelo banho sem quimeras da realidade, ele resolveu nos mostrar, de forma ineludível, tudo aquilo que se passa debaixo do sol! Somos, como diria o “poetinha”, “uma aquarela que, um dia enfim, descolorirá!”.

J.A.R. – H.C.

Carlos Nejar
(n. 1939)

Livro do Sol

As muitas águas não puderam extinguir
o amor, nem os rios terão força para o submergir.
(Salomão, Cântico dos Cânticos, 8, 7-8)

I

As coisas existem além delas.
Não padecem, nem sofrem,
mas existem
e projetam a sombra nas janelas.

Penetrar a substância que as anima
como a noite as embala no seu ventre,
como a noite as concentra e precipita,
não tem asas nem plumas.

Só silêncio
sonoro como as algas.
Só silêncio
de astros
na caverna.

As coisas nos prendem
junto a elas;
nos contemplam,
nos amam
mas nos prendem.
E ficamos calados
na amurada,
vendo as coisas
pensarem
no que somos.

II

Somos nada.
E o nada nos consome,
nos abraça, nos vence.
Somos nada.

Somos asas fechadas para o voo
ao som de estranhas músicas,
de gerações emersas, ou parques
estendidos para o mar.

As fronteiras divisam nosso sangue.
Julgamo-nos libertos, mas não somos.
O clamor das cidades nos incita
para a fuga. O clamor das cidades
nos esmaga e as máquinas
trituram nosso sonho.

Somos nada. Os frutos
se reúnem para a noite.
Condenados tecemos a cadência
das conchas, das areias, dos espaços.
Virão depois de nós homens, mulheres
que hão de quebrar cadeias, nuvens, medos.
Mas nunca hão de rasgar as rochas nuas
de um século maior do que a montanha.

Nas ondas somos barcos enlunados;
nos olhos somos sais, peixes, minutos;
nos braços somos gestos que apodrecem.
Ninguém nos elucida para o mundo.

Chorar é tão inútil como um menino morto
sobre as rosas. E o nada que nós somos,
mais inútil que o sepultamento de um menino.

Perdemos o roteiro de ser homem.
A dor que nos gerou ficou escrita
no deserto, no fogo, nas estradas.
Vestimo-nos de auroras e veludo,
de chuvas, estrelas e purezas.
Vestimo-nos de tudo e nada somos.

A morte se repete em nosso rosto;
escondemos a morte e nada somos.
O abismo nos convida para o sono;
escondemos o abismo e nada somos.

Sentimo-nos sem mãos e acariciamos
as estações, os meses, as semanas.

Nós amamos a vida e nada somos.
Ancoramos no amor e não amamos
a não ser o que somos. E o que somos?

Nós buscamos na carne o esquecimento,
a ferrugem dos ossos, o abandono.
Nós buscamos no amor o esquecimento,
a infância que tivemos entre os anjos,
o domínio do fogo e da poesia,
o mistério que flui entre dois corpos.
As florestas que os unem no delírio.

Dia a dia mudamos como um rio.
Corremos entre as pedras e mudamos
na epiderme, no ar, nos olhos gastos.

Nós cansamos de tudo e nada somos.
E o que somos dissolve-se no tempo,
e o que somos a noite nos retira
sem deixar um sulco de navio.

Coisas Comuns
(Barbara Groff: pintora norte-americana)

Referência:

NEJAR, Carlos. Livro do sol. In: CONGÍLIO, Mariazinha (Seleção e coordenação). Antologia de poetas brasileiros. 1. ed. Lisboa, PT: Universitária, 2000. p. 53-55.

domingo, 28 de junho de 2015

Olavo Bilac - Gioconda

O cronista e poeta carioca Olavo Bilac também se deixou encantar pelo retrato da “Gioconda”, a Mona Lisa, e à musa retratada pelo italiano Leonardo da Vinci dedicou um dos sonetos constantes em sua coletânea de poemas “Tarde”.

Abaixo o transcrevemos e neste ponto o sumariamos: há no sorriso da Mona Lisa um quê de fatal, irônico, plasmado em sua “dobrez ancestral”, comparável à de figuras fabulosas, como a da Quimera. Bilac metaforiza ainda a “beleza fatal” da senhora à da divina Ísis ou à da esfinge de Gizé, ambas da terra dos faraós, ou ainda à da sereia, entidade mitológica clássica, e à de Eva, o protótipo judaico-cristão da primeira mulher.

J.A.R. – H.C.

Olavo Bilac
(1865-1918)

Gioconda

Deu-te o grande Leonardo ao sorriso a ironia,
Insídia, e eterno ardil, na luminosa teia:
Tal, a Belerofonte a Quimera sorria,
E a Esfinge de Gizé sorri na adusta areia...

A cilada do amor, o embuste da utopia,
O desejo, que abrasa, e a esperança, que enleia,
Chispam na tua boca impenetrável, fria...
Seduzes, através dos séculos, sereia!

Esse leve clarão no teu lábio, indeciso,
É a dobrez ancestral, a malícia primeva
Da Ísis, da pecadora altriz do Paraíso:

Porque, para extrair as gerações da treva,
À serpe, e a Adão, e a Deus, com o teu mesmo sorriso,
Sorria, astuta e forte, a mãe das raças, Eva.

Gioconda
(Leonardo da Vinci: pintor italiano)

Elucidário:

Adusta – abrasada, ardente.
Belerofonte – herói grego encarregado de matar Quimera, que devastava a terra e atacava os rebanhos.
Dobrez – fingimento, hipocrisia.
Altriz – provedora, nutriente.

Referência:

BILAC, Olavo. Gioconda. In: __________. Poesias. São Paulo, SP: Martin Claret, 2011. p. 208. (‘A Obra-Prima de Cada Autor’, n. 119)

sábado, 27 de junho de 2015

Antônio Brasileiro - Arte Poética

O poeta baiano Antônio Brasileiro nos apresenta mais um poema-conceito sobre a arte poética. Seus versos, diz-nos, nascem com a prodigalidade de um mundo – como articularíamos? – sem teleologias, de um modo natural, alheio a quaisquer valorações humanas.

São oito dísticos graciosamente redigidos, a veicularem a ideia de que a poesia não tem propósitos ou programas – distintamente de outras abordagens mais engajadas –, valendo então por si própria, independentemente dos predicados que se lhe atribuam.

J.A.R. – H.C.

Antônio Brasileiro
(n. 1944)

Arte Poética

Meus versos são da pura essência
dos poemas inessenciais.

Nada dizem de verídico
não querem nada explicar.

Não narram o clamor dos peitos
não encaram a dor do mundo.

Se por vezes falam alto
é por puro gozo, júbilo.

humor que brota de dentro
como se movem os astros.

Eles, meus versos, são pura
floração de irresponsáveis

flores nascidas nos mangues,
por nascer – mas multicores,

lindas, não importa que os homens
as conheçam ou não conheçam.

(De: “A Pura Mentira”, 1982)

Figura Feminina
(Vicente Romero Redondo: pintor espanhol)

Referência:

BRASILEIRO, Antônio. Arte poética. In: GARCÍA, Xosé Lois. Antologia da poesia brasileira / Antología de la poesía brasileña. Edición bilingüe. Santiago de Compostela, Galiza, U.E.: Laiovento, 2001. p. 332.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Carlos María Varela - Borges

Vem do Uruguay um poema-homenagem ao grande escritor argentino Jorge Luis Borges. Nele, aparecem tanto referências diretas ao próprio Borges – sua deficiência visual, o amor aos livros e às bibliotecas, a paixão irrefreável pela grande literatura, a fixação pelo duplo, o real como sonho etc. –, quanto se faz menção a algumas de suas obras, como o conto “O Jardim das Veredas que se Bifurcam”.

O autor do poema, Carlos María Varela, comente-se, nasceu em 18 de janeiro de 1955, tem licenciatura em Sociologia e publicou uma seleta de suas poesias, tendo o amor e o erotismo como tema, intitulada “Letras Derramadas” (ABRACE, 2002, p. 308).

J.A.R. – H.C.

Borges

En tu mente irónica y brillante
se conjugan dos presencias:
la de la realidad y el sueno
que se confunden inexorablemente.
Las sombras de tus dias
abrieron un camino infinito,
donde se bifurcan los senderos
que buscan Ia eternidad
resumida en Ias bibliotecas.
Tus lentas pausas de silencio
ha descorrido el enigma,
resolviendo el acertijo del destino
que te ha condenado a Ia desgracia,
los líbros y Ia noche.
Tu sabiduría ha vencido al tiempo
dejando en ias quietas calles,
la lección de los malevos,
la prédica de Ia filosofía
y Ia geografía de países lejanos.

Borges
(Caricatura de Cido Gonçalves)

Borges

Em tua mente irônica e brilhante
conjugam-se duas presenças:
a da realidade e a do sonho
que se confundem inexoravelmente.
As sombras de teus dias
abriram um caminho infinito,
bifurcado em sendas
que buscam a eternidade
resumida nas bibliotecas.
Tuas lentas pausas de silêncio
desvendaram o enigma,
resolvendo o mistério do destino
que te condenou à desgraça,
aos livros e à noite.
Tua sabedoria venceu o tempo
deixando nas quietas ruas,
a lição dos malévolos,
a prédica da filosofia
e a geografia de países distantes.

Referência:

VARELA, Carlos María. Borges. In: ABRACE. Entresiglos II: selección de poesía de autores contemporáneos. Montevideo: Bianchi; Brasília: Pilar, 2002. p. 308. (Colleción Señales de Vida)

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Murilo Mendes - Poema Visto por Fora

A arte de atribuir valor às palavras sempre inquietou os poetas: neste poema de Mendes, por exemplo, vincula-se o fazer poético ao próprio momento da criação – e da morte, seu par antinômico.

Em suas linhas e entrelinhas, agrega-se valor à escrita por intermédio de um hiperbólico anelo místico, dando vazão às falas que interpretam unitariamente a diversidade do mundo. Todos em um. Linhas de força partindo de cada um para todos os outros. E todos unidos sob a influência de um mesmo sublime e divino campo.

J.A.R. – H.C.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Poema Visto por Fora

O espírito da poesia me arrebata
Para a região sem forma onde passo longo tempo imóvel
Num silêncio de antes da criação das coisas.
Súbito estendo o braço direito e tudo se encarna:
O esterco novo da volúpia aquece a terra,
Os peixes sobem dos porões do oceano,
As massas precipitam-se na praça pública.
Bordéis e igrejas, maternidades e cemitérios
Levantam-se no ar para o bem e para o mal.

Os diversos personagens que encerrei
Deslocam-se uns dos outros, fundam uma comunidade
Que eu presido ora triste ora alegre.

Não sou Deus porque parto para Ele,
Sou um deus porque partem para mim.
Somos todos deuses porque partimos para um fim único.

Em: “A Poesia em Pânico: 1936-1937)

Contemplação: monge no litoral
(Jakub Schikaneder: pintor tcheco)

Referência:

MENDES, Murilo. Poema visto por fora. In: __________. Melhores poemas de Murilo Mendes. 3. ed. Seleção de Luciana Stegagno Picchio. São Paulo, SP: Global, 2000. p. 73. (‘Os Melhores Poemas’, n. 32)

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Paul Éluard - A poesia deve ter por fim a verdade prática

O poeta francês Paul Éluard, por meio do poema em epígrafe, convoca todos para uma cruzada contra a poesia que se manifesta de modo tão apenas intimista, propondo, em contrapartida, cânones artísticos voltados a um maior engajamento social e político, lindeiros, como se diz, aos programas de ação sobre o mundo real.

Note, internauta, que há clara inflexão no quinto terceto do poema, depois de o autor espelhar, nos tercetos precedentes, o estado de anuência íntima com os pares a quem se dirige. Aqui, depois de iniciar o verso com uma adversativa, surge o ponto de discordância do poeta com os seus amigos. Altera-se a anáfora inicial com a muda do verbo “dizer” para “cantar”.

Agora o objeto de observação passa a ser mediato: a rua ou, mais amplamente, o país. E uma vez que o poeta acolhe recusa à proposta de maior compromisso com a instância sociopolítica, vê-se em estado de “alheamento urbano”, já que os outros preferem rumar em direção ao “deserto”. Com isso, perguntamos: a poesia deve mesmo ter por fim a verdade prática, ou essa é apenas uma das muitas formas por meio das quais ela pode se manifestar?!

J.A.R. – H.C.

Paul Éluard
(1895-1952)

La Poésie Doit Avoir Pour But la Vérité Pratique

À mes amis exigeants.

Si je vous dis que le soleil dans la forêt
Est comme un ventre qui se donne dans un lit
Vous me croyez vous approuvez tous mes désirs

Si je vous dis que le cristal d’un jour de pluie
Sonne toujours dans la paresse de l’amour
Vous me croyez vous allongez le temps d’aimer

Si je vous dis que sur les branches de mon lit
Fait son nid un oiseau qui ne dit jamais oui
Vous me croyez vous partagez mon inquietude

Si je vous dis que dans le golfe d’une source
Tourne Ia clé d’un fleuve entr’ouvrant Ia verdure
Vous me croyez encore plus vous comprenez

Mais si je chante sans détours ma rue entière
Et mon pays entier comme une rue sans fin
Vous ne me croyez plus vous allez au désert

Car vous marchez sans but sans savoir que les hommes
Ont besoin d’être unis d’espérer de lutter
Pour expliquer le monde et pour le transformer

D’un seul pas de mon coeur je vous entraînerai
Je suis sons forces j’ai vêcu je vis encore
Mais je m’étonne de parler pour vous ravir

Quand je voudrais vous libérer pour vous confondre
Aussi bien avec l’algue et le jonc de l’aurore
Qu’avec nos frères qui construisent leur lumière.

Ponte do Brooklyn
(Leonid Afremov: pintor israelense)

A poesia deve ter por fim a verdade prática

A meus amigos exigentes.

Se eu vos disser que o sol ardendo na floresta
Semelha um ventre que se oferta sobre um leito
Me acreditais pois aprovais os meus desejos

Se eu vos disser que a cor cristal de um céu chuvoso
Ressoa sempre na preguiça de um amor
Me acreditais pois prolongais tempos de amar

Se eu vos disser que sobre os ramos do meu leito
Faz ninho um pássaro que nunca diz que sim
Me acreditais pois partilhais minha inquietude

Se eu vos disser que em meio ao seio de uma fonte
Gira a chave de um rio entreabrindo a verdura
Me acreditais e ainda mais me compreendeis

Mas se eu cantar sinceramente a rua inteira
E todo o meu país como uma rua imensa
Já não me acreditais ireis para o deserto

Pois caminhais sem rumo e não sabeis que os homens
Necessitam se unir e esperar e lutar
Para explicar o mundo e para transformá-lo

Com um só pulsar do peito eu vos seduzirei
Já estou sem forças já vivi e vivo ainda
Porém me espanto de falar para encantar-vos

Se eu vos queria libertar pra confundir-vos
Seja com a alga e o junco e os sargaços da aurora
Seja com os irmãos que constroem sua luz.

Referência:

ÉLUARD, Paul. La poésie doit avoir pour but la vérité pratique / A poesia deve ter por fim a verdade prática. In: RIVERA, José Jeronymo (Organização e Tradução). Poesia francesa: pequena antologia bilíngue. 2. ed. revista e aumentada. Brasília, DF: Thesaurus, 2005. Em francês: p. 164 e 166; em português: p. 165 e 167.

terça-feira, 23 de junho de 2015

João Cabral de Melo Neto - A Lição de Poesia

Num labor diuturno com as palavras, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto ora nos propõe um poema com temática algo parecida com a do famoso “Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade: o esforço poético.

Uma lida que Cabral circunscreve a metafóricas “vinte palavras” de salgado teor – das quais também se conhece o “funcionamento, a evaporação, a densidade” –, e com as quais se expande o mundo para além de suas formas e fronteiras aparentemente estáveis.

J.A.R. – H.C.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

A Lição de Poesia

1. Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2. A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da ideia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3. A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis – naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

Nascer do Sol
(Albert Bierstadt: pintor prussiano)

Referência:

MELO NETO, João Cabral de. A lição de poesia. In: __________. Antologia poética. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Livraria José Olympio Editora - Sabiá, 1973. p. 265-266.