Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 30 de setembro de 2014

"Doutor Fausto": Filosofia, Arte e Genialidade

Em passagens originárias de “Doutor Fausto”, de Thomas Mann, temos algumas reflexões sobre os tópicos em epígrafe. Ora são elas provenientes de comentários do narrador-personagem Serenus Zeitblom, doutor em Filosofia; ora de seu biografado Adrian Leverkühn, compositor e músico que, à maneira de um Fausto lendário, ascende com o Terceiro Reich, para 24 anos de realizações musicais.

Doutor Fausto” é isso mesmo: uma prodigiosa prosa sobre música e a sua teorização, diálogos filosóficos, psicologia religiosa, arte em geral, além de uma não menos proverbial alegoria política.

J.A.R. – H.C. 
Doutor Fausto: 1947
(Thomas Mann)

[Serenus Zeitblom]

Ocasionalmente, nós nos tínhamos posto de acordo, ou melhor, tínhamos aderido à opinião corrente de ser a Filosofia a rainha das ciências. Entre as demais, segundo constatávamos, ocupava ela aproximadamente o mesmo lugar que, entre os instrumentos, cabia ao órgão. Supervisionava-as, estabelecia uma união espiritual entre elas, ordenava e purificava os resultados de todas as pesquisas científicas, até formarem uma imagem do universo, uma síntese superior, normativa, a desvendar o sentido da vida, uma determinação visionária da posição do homem no cosmo (MANN, 1984, p. 108-109).

[Serenus Zeitblom]

Na sua obra, há muita aparência. Indo mais longe, até se poderia afirmar que ela é por índole aparente, como “obra”. Tem a ambição de fazer-nos crer que não foi feita e sim se originou, saltando, tal e qual Palas Atena, da cabeça de Júpiter, plenamente adornada de suas cinzeladas armas. Mas isso é pura ilusão. Nunca obra alguma nasceu espontaneamente assim. Pelo contrário, é trabalho, trabalho artístico, em prol da aparência, e agora se pergunta se, na situação atual de nossa consciência, de nosso conhecimento, de nosso senso de verdade, esse jogo continua lícito, espiritualmente possível, digno de ser levado a sério; pergunta-se se a obra como tal, a criação autônoma, harmoniosa, cerrada em si, ainda mantém uma relação legítima com a total insegurança, com a problematicidade, com a ausência de harmonia de nossas condições sociais; pergunta-se se toda a aparência, até a mais bela, e justamente a mais bela, não se transformou nos dias de hoje em mentira (MANN, 1984, p. 242).

[Adrian Leverkühn]

Flores de gelo, ou flores de amido, açúcar e celulose - ambas são Natureza, e apenas resta saber qual dessas manifestações toma-a merecedora de elogios mais altos. Teu pendor, meu amigo, para ir em busca do objetivo, da chamada verdade, e para tachar o subjetivo, a vivência pura, de desprovidos de valor, é deveras próprio de um pequeno-burguês, e cumpre superá-lo. Tu me vês, logo existo para ti. Vale então a pena perguntar se realmente existo? Não será real aquilo que produz efeitos? Não serão verdade a vivência e o sentimento? O que te exalta, o que aumenta tua sensação de força e poder e domínio, eis a verdade, com os diabos! Ainda que, do ponto de vista da virtude, seja dez vezes mentira! O que digo significa que uma inverdade suscetível de intensificar as energias equivale a qualquer verdade esterilmente virtuosa. E tenho para mim que uma doença criativa, propiciadora de gênio, uma doença capaz de cavalgar por cima de quaisquer obstáculos, saltando em audaciosa ebriedade de rochedo em rochedo, agrada mais à vida do que a saúde que se arrasta a pé. Nunca ouvi besteira maior do que a que afirma que do mórbido só pode provir o mórbido. A vida não está cheia de escrúpulos, e não se interessa nem um pouquinho pela moral. Apossa-se do audaz produto da doença, devora-o, digere-o, e, no momento em que o assimilar, ele virará saúde. Diante do fato da eficiência vital, meu querido amigo, extingue-se qualquer distinção entre doença e saúde. Toda uma horda, toda uma geração de rapazes receptivos, sadios como mais ninguém, precipita-se sobre a obra do génio mórbido, do homem que foi genializado pela doença. Admiram-na, encomiam-na, glorificam-na, levam-na consigo, transformam-na entre si, legam-na à Cultura que não se alimenta apenas de pão feito em casa, senão também de dons e venenos fornecidos pela farmácia “Aos Beatos Apóstolos” (MANN, 1984, p. 328).

[Serenus Zeitblom]

O gênio é uma forma de energia vital, profundamente conhecedora da doença, nela abeberada e, por meio dela, criativa (MANN, 1984, p. 480).

Referência:

MANN, Thomas. Doutor Fausto. Tradução de Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. (Coleção ‘Grandes Romances’)

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Miguel, Rafael e Gabriel: García Lorca

Em dias como hoje, 29 de setembro, a Igreja celebra a festa aos Arcanjos Miguel, Rafael e Gabriel, respectivamente associados à proteção, à cura e ao relato dos planos divinos.

A empregar os nomes dos referidos arcanjos em associação com três cidades de sua Espanha natal – Granada (onde faleceu), Córdoba e Sevilha –, o poeta Frederico García Lorca compôs três poemas, constantes na obra “Romancero Gitano, dedicando-os a três distintos amigos. 

São eles a seguir transcritos no original e em português, para regalo dos leitores deste blog.

J.A.R. – H.C. 
Frederico García Lorca
(1898-1936)

Granada
(Espanha)

San Miguel
(Granada)
Frederico G. Lorca

A DIEGO BUIGAS DE DALMÁU

E VEN desde las barandas,
por el monte, monte, monte,
mulos y sombras de mulos
cargados de girasoles.

Sus ojos en las umbrías
se empañan de inmensa noche.
En los recodos del aire
cruje la aurora salobre.

Un cielo de mulos blancos
cierra sus ojos de azogue
dando a la quieta penumbra
un final de corazones.
Y el agua se pone fría
para que nadie la toque.
Agua loca y descubierta
por el monte, monte, monte.

*
         San Miguel, lleno de encaja
en la alcoba de su torre,
enseña sus bellos muslos
ceñidos por los faroles.

         Arcángel domesticado
en el gesto de las doce,
finge una cólera dulce
de plumas y ruiseñores.
San Miguel canta en los vidrios;
Efebo de tres mil noches,
fragante de agua colonia
y lejano de las flores.

*
         El mar baila por la playa
un poema de balcones.
Las orillas de la luna
pierden juncos, ganan voces.
Vienen manólas comiendo
semillas de girasoles,
los culos grandes y ocultos
como planetas de cobre.
Vienen altos caballeros
y damas de triste porte,
morenas por la nostalgia
de un ayer de ruiseñores.
Y el obispo de Manila
ciego de azafrán y pobre,
dice misa con dos filos
para mujeres y hombres.

*
         San Miguel se estaba inquieto
en la alcoba de su torre,
con las enaguas cuajadas
de espejitos y entredoses.

San Migue!, rey de los globos
y de los números nones,
en el primor berberisco
de gritos y miradores.

Miguel Arcanjo
(Jacopo Vignali: 1592-1664)

São Miguel
(Granada)
Frederico G. Lorca

A DIEGO BUIGAS DE DALMÁU

VEEM-SE desde as varandas,
pelo monte, monte, monte,
mulos e sombras de mulos
carregados de girassóis.

         Seus olhos nas umbrias
se empanam de imensa noite.
Nos ângulos do ar,
range a aurora salobra.

         Um céu de mulos brancos
fecha seus olhos de azougue
dando à quieta penumbra
um final de corações.
E a água se torna fria
para que ninguém a toque.
Água louca e descoberta
pelo monte, monte, monte.

*
São Miguel cheio de encaixes
na alcova de sua torre
mostra suas belas coxas
cingidas pelos faróis.

         Arcanjo domesticado
no gesto das doze horas,
finge uma cólera doce
de plumas e rouxinóis.
São Miguel canta nos vidros;
efebo de três mil noites,
cheirando a água-de-colônia
e longe das flores.

*
         O mar dança pela praia,
um poema de balcões.
As bordas da lua
perdem juncos, ganham vozes.
Vêm raparigas comendo
sementes de girassóis,
os ânus grandes e ocultos
como planetas de cobre.
Vêm altos cavalheiros
e damas de triste porte,
morenas pela nostalgia
de um ontem de rouxinóis.
É o bispo de Manila,
cego de açafrão e pobre,
diz a missa com dois fios
para mulheres e homens.

*
         São Miguel estava quieto
na alcova de sua torre,
com as anáguas coalhadas
de espelhinhos e entremeios.

         São Miguel, rei dos globos
e dos números novenos,
no primor berberesco
de gritos e miradouros.

Córdoba
(Espanha)

San Rafael
(Córdoba)
Frederico G. Lorca

A JUAN IZQUIERDO CROSELLES

         I

COCHES cerrados llegaban
a las orillas de juncos
donde las ondas alisan
romano torso desnudo.
Coches que el Guadalquivir
tiende en su cristal maduro,
entre láminas de flores
y resonancias de nublos.

Los niños tejen y cantan
el desengaño del mundo
cerca de los viejos coches
perdidos en el nocturno.
Pero Córdoba no tiembla
bajo el misterio confuso,
pues si la sombra levanta
la arquitectura del humo,
un pie de mármol afirma
su casto fulgor enjuto.
Pétalos de lata débil
recaman los grises puros
de la brisa, desplegada
sobre los arcos de triunfo.

Y mientras el puente sopla
diez rumores de Neptuno,
vendedores de tabaco
huyen por el roto muro.

         II

Un solo pez en el agua
que a las dos Córdobas junta:
Blanda Córdoba de juncos.
Córdoba de arquitectura.
Niños de cara impasible
en la orilla se desnudan,
aprendices de Tobias
y Merlines de cintura,
para fastidiar al pez
en irónica pregunta
si quiere flores de vino
o saltos de media luna.

Pero el pez que dora el agua
y los mármoles enluta,
les da lección y equilibrio
de solitaria columna.
El Arcángel aljamiado
de lentejuelas oscuras,
en el mitin de las ondas
buscaba rumor y cuna.

Un solo pez en el agua.
Dos Córdobas de hermosura.
Córdoba quebrada en chorros.
Celeste Córdoba enjuta.


Arcanjo Rafael
(Giovanni Santi: 1435-1494)

São Rafael
(Córdoba)
Frederico G. Lorca

A JUAN IZQUIERDO CROSELLES

         I

CARROS fechados chegavam
nas bordas de juncos
onde as ondas alisam
romano torso desnudo.
Carros, que o Guadalquivir
estende em seu cristal maduro,
entre lâminas de flores
e ressonância de nuvens.

Os meninos tecem e cantam
o desengano do mundo,
perto dos velhos carros
perdidos no noturno.
Mas Córdoba não treme
sob o mistério confuso,
pois se a sombra levanta
a arquitetura do fumo,
um pé de mármore afirma
seu casto fulgor enxuto.
Pétalas de lata débil
recamam os grises puros
da brisa, estendida
sobre os arcos de triunfo.
E enquanto a ponte sopra
dez rumores de Netuno,
vendedores de tabaco
fogem pelo muro quebrado.

         II

         Um só peixe na água
que as duas Córdobas junta:
Branca Córdoba de juncos.
Córdoba de arquitetura.
Meninos de cara impassível
na margem se desnudam,
aprendizes de Tobias
e merlins de cintura,
para aborrecer o peixe
em irônica pergunta
se quer flores de vinho
ou saltos de meia-lua.
Mas o peixe, que doura a água
e os mármores enluta,
lhes dá lição e equilíbrio
de solitária coluna.
O Arcanjo aljemiado
de lantejoulas escuras
na assembleia das ondas
buscava rumor e berço.

*
         Um só peixe na água.
Duas Córdobas de formosura.
Córdoba quebrada em jorros.
Celeste Córdoba enxuta.

Sevilha
(Espanha)

San Gabriel
(Sevilla)
Frederico G. Lorca

A D. AGUSTÍN VIÑUALES

         I

UN bello niño de junco,
anchos hombros, fino talle,
piel de nocturna manzana,
boca triste y ojos grandes,
nervio de plata caliente,
ronda la desierta calle.
Sus zapatos de charol
rompen las dalias del aire
con los dos ritmos que cantan
breves lutos celestiales.

En la ribera del mar
no hay palma que se le iguale,
ni emperador coronado,
ni lucero caminante.
Cuando la cabeza inclina
sobre su pecho de jaspe,
la noche busca llanuras
porque quiere arrodillarse.
Las guitarras suenan solas
para San Gabriel Arcángel,
domador de palomillas
y enemigo de los sauces.
– San Gabriel: El niño llora
en el vientre de su madre.
No olvides que los gitanos
te regalaron el traje.

         II

Anunciación de los Reyes,
bien lunada y mal vestida,
abre la puerta al lucero
que por la calle venia.
El Arcángel San Gabriel,
entre azucena y sonrisa,
bisnieto de la Giralda,
se acercaba de visita.
En su chaleco bordado
grillos ocultos palpitan.
Las estrellas de la noche,
se volvieron campanillas.
San Gabriel, aquí me tienes
con tres clavos de alegría.
Tu fulgor abre jazmines
sobre mi cara encendida.
Dios te salve, Anunciación.
Morena de maravilla.
Tendrás un niño más bello
que los tallos de la brisa.
¡Ay, San Gabriel de mis ojos!
¡Gabrielillo de mi vida!
Para sentarte yo sueño
un sillón de clavellinas.

Dios te salve, Anunciación,
bien lunada y mal vestida.
Tu niño tendrá en el pecho
un lunar y tres heridas.

iAy, San Gabriel que reluces!
¡Gabrielillo de mi vida!
En el fondo de mis pechos
ya nace la leche tibia.
Dios te salve, Anunciación.
Madre de cien dinastías.
Áridos lucen tus ojos,
paisajes de caballista.

*
El niño canta en el seno
de Anunciación sorprendida.
Tres balas de almendra verde
tiemblan en su vocecita.

Ya San Gabriel en el aire
por una escala subía.
Las estrellas de la noche
se volvieron siemprevivas.

Arcanjo Gabriel
(Gaudenzio Ferrari: 1475-1546) 

São Gabriel
(Sevilha)
Frederico G. Lorca

A D. AGUSTÍN VIÑUALES

         I

UM belo menino de junco,
largos ombros, fino talhe,
pele de noturna maçã.
boca triste e olhos grandes,
nervo de prata quente,
ronda a rua deserta.
Seus sapatos de charão
rompem as dálias do ar,
com os dois ritmos que cantam
breves lutos celestiais.
Na beira do mar
não há palma que lhe iguale,
nem imperador coroado
nem luzeiro caminhante.
Quando a cabeça inclina
sobre seu peito de jaspe,
a noite busca planuras
porque quer ajoelhar-se.
As guitarras cantam sozinhas
para São Gabriel Arcanjo,
domador de pombazinhas
e inimigo dos salgueiros.
São Gabriel: o menino chora
no ventre de sua mãe.
Não esqueças que os gitanos
te presentearam o traje.

         II

         Anunciação dos Reis,
bem lunada e mal vestida,
abre a porta ao luzeiro
que pela rua vinha.
O Arcanjo São Gabriel,
entre açucenas e sorriso,
o bisneto da Giralda,
chegava para visita.
Em seu jaleco bordado
grilos ocultos palpitam.
As estrelas da noite
transformaram-se em campainhas.
São Gabriel: eis-me aqui
com três cravos de alegria.
Teu fulgor abre jasmins
sobre meu rosto aceso.
Deus te salve, Anunciação.
Morena de maravilha.
Terás um menino mais belo
que os rebentos da brisa.
Ai, São Gabriel de meus olhos!
Gabrielzinho de minha vida!,
para sentar-te eu sonho
uma poltrona de cravinas.

         Deus te salve, Anunciação,
bem lunada e mal vestida.
Teu filho terá no peito
um lunar e três feridas.
Ai, São Gabriel que reluz!
Gabrielzinho de minha vida!
No fundo de meus peitos
nasce o leite tépido.
Deus te salve, Anunciação,
Mãe de cem dinastias.
Áridos luzem teus olhos,
paisagem de cavaleiros.

*
         O menino canta no seio
de Anunciação surpresa.
Três balas de amêndoa verde
tremem em sua vozinha.

         Já São Gabriel nos ares
por uma escada subia.
As estrelas da noite
transformaram-se em sempre-vivas.

Referência:

LORCA, Frederico García. San Miguel; São Miguel. In: __________. Obra poética completa. Edição Bilingue. Tradução de William Agel de Melo. Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 370-373.

LORCA, Frederico García. San Rafael; São Rafael. In: __________. Obra poética completa. Edição Bilingue. Tradução de William Agel de Melo. Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 372-375.

LORCA, Frederico García. San Gabriel; São Gabriel. In: __________. Obra poética completaEdição Bilingue. Tradução de William Agel de Melo. Brasília: Ed. da UnB; São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 376-379.