Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Palestina Livre, Já! [Paracelsus – Robert Browning]

Nestes tempos ainda bicudos, em que vemos o homem muito mais do que como simples “lobo’ do homem, mas como carrasco implacável do próprio homem, exemplificadamente lá pelo Oriente Médio – os palestinos civis que o digam, sob o fogo cruzado do exército de Israel! –, fazemos apelo a um tempo de paz, em que nossas diferenças sejam superadas pela tolerância e pelo convívio pacífico, sem racismos, sem radicalismos, sem divisionismos separatistas, sem quaisquer desonras ao próximo impingidas a partir de argumentos suspeitos, falsos, torpes ou hipócritas.

Não desejo nada disso: como John Lennon, podem me acusar de “sonhador”, mas aspiro a essa utopia com muita esperança. Não é possível que o estado natural do ser humano, em pleno Século XX, não haja evoluído de suas primitivas formas mentais, agressivas ao extremo, egoístas por princípio, destrutivas por extensão.

Em defesa do povo palestino, agredido e vituperado em seus legítimos direitos de autodeterminação, grito como muitos: Palestina Livre, Já!

Deixamos aqui uma mensagem de confiança no homem: nas entrelinhas de um excerto do longo poema “Paracelsus”, de Robert Browning, vemos que já há muitas pessoas que preferem ver mais próximo um futuro no qual a autêntica justiça não erre desconhecida ou ignorada deliberadamente em nossas consciências!

J.A.R. – H.C. 
Robert Browning
(1812-1889)

Part V – Paracelsus Attains
(Excerpt)

Thus he [God] dwells in all,
From life’s minute beginnings, up at last
To man – the consummation of this scheme
Of being, the completion of this sphere
Of life: whose attributes had here and there
Been scattered o’er the visible world before,
Asking to be combined, dim fragments meant
To be united in some wondrous whole,
Imperfect qualities throughout creation,
Suggesting some one creature yet to make,
Some point where all those scattered rays should meet
Convergent in the faculties of man.

[…]

When all the race is perfected alike
As man, that is; all tended to mankind,
And, man produced, all has its end thus far:
But in completed man begins anew
A tendency to God. Prognostics told
Man’s near approach; so in man’s self arise
August anticipations, symbols, types
Of a dim splendour ever on before
In that eternal circle life pursues.
For men begin to pass their nature’s bound,
And find new hopes and cares which fast supplant
Their proper joys and griefs; they grow too great
For narrow creeds of right and wrong, which fade
Before the unmeasured thirst for good: while peace
Rises within them ever more and more.

Such men are even now upon the earth.

Referência:

BROWNING, Robert. Paracelsus Attains. In: __________. Paracelsus. Disponível neste endereço. Acesso em: 31 de julho de 2014. 


Parte V – Paracelsus Alcança
(Excerto)

Deus habita em tudo,
Do minuto inicial de vida
Ao Homem – a consumação deste plano
Do ser, a conclusão desta esfera
Da vida: seus atributos espalhados
Aqui e ali pelo mundo visível,
Pedindo para serem combinados,
São pálidos fragmentos destinados
A se unirem num todo esplendoroso,
Qualidades ainda imperfeitas,
Que se encontram por toda a criação,
Sugerem uma criatura a ser formada,
Um ponto onde todos os raios dispersos
Devam convergir nas faculdades do Homem.

[...]

Quando a raça inteira chegar à perfeição,
Ao Homem, ao Ser, tudo visando à Humanidade,
Completa-se a criação e termina o ciclo:
Mas o Homem aperfeiçoado
Reinicia o caminho rumo a Deus.
O Homem se aproxima, anunciam os profetas;
Então surgem em seu ser visões majestosas,
Protótipos de um pálido esplendor,
Símbolos da eterna roda da vida.
Porque os Homens começam a vencer
Os limites de sua natureza,
Encontram novas esperanças e objetivos
Que não tardam a tornar menores
Suas próprias alegrias e aflições;
Os Homens tornam-se grandes demais
Para estreitas convicções de certo e errado,
Que esmaecem perante a incomensurável
Sede pelo Bem; enquanto a Paz
No seu íntimo cresce mais e mais.
Homens assim já andam sobre a Terra,
Serenos, entre as outras criaturas
Semiformadas que estão ao seu redor.

Referência:

BROWNING, Robert. Paracelsus alcança. In: BAKER, Douglas. Anatomia esotérica. Tradução de Júlia Bárány. São Paulo: Mercuryo, 1993. p. v.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Satã (V): Shakespeare

Shakespeare, sempre Shakespeare, é um recurso prestigioso a que todo blogueiro desesperado pode recorrer, quando está à procura de um tema específico, como a companhia adusta do “Anjo do Mal” (rs).

E claro, o bardo jamais decepciona os amantes da alta literatura, seja por sua forma prodigiosa de arregimentar as palavras no idioma inglês, seja porque sua capacidade de criar imagens é insuperável.

Seu papel protagônico o transforma num deus de onde tudo promana. Decerto, é por isso que Harold Bloom julga que o substrato do humano, vale dizer, suas emoções mais cristalinas, teria sido obra cujo manancial primário flui sem óbices pelos textos produzidos pelo dramaturgo.

No soneto que escolhemos para ilustrar a relação do divino com o maligno, o poeta fala de seus dois amores: um anjo do bem – que seria masculino – e um do mal, feminino. Numa leitura em primeira mão, as feministas (seriam só elas?!) veriam nessa associação certo lastro misógino – ou melhor, a preferência pela companhia do varão – ou, no mínimo, de bissexualidade.

Contudo, uma leitura mais atenta parece não dizer exatamente isso: o varão e a mulher são duas fontes de amor, em disputa pelo primado na índole tangível do poeta. Este expressa seu temor de que o anjo bom seja arrastado à luxúria, sendo seduzido pelo mau, transformando-se desse modo também em diabo, pela expulsão de sua natureza angelical bem-intencionada.

Em suma: numa atmosfera acintosamente sexualizada, Shakespeare destila a sua ambiguidade erótica em texto que muito faz lembrar as relações que os antigos filósofos gregos mantinham com os seus discípulos e esposas. Se houver dúvidas sobre a associação que ora sugiro, proponho aos internautas que leiam a parte final de “O Banquete”, de Platão: ali se vê a relação Sócrates x Alcibíades e, por outra via, do primeiro com a sua geniosa esposa Xantipa.

Mas se a leitura for mesmo a do conflito meramente interno, no ânimo do poeta, então poderíamos lembrar a letra de uma famosa canção, maravilhosamente interpretada por Nana Caymmi, intitulada “O Bem e o Mal”, de autoria do seu mano Danilo Caymmi, que pode ser escutada na segunda parte deste vídeo.

J.A.R. – H.C. 
Shakespeare
(1564-1616)

CXLIV

Two loves I have of comfort and despair,
Which like two spirits do suggest me still,
The better angel is a man right fair:
The worser spirit a woman colour’d ill.

To win me soon to hell my female evil,
Tempteth my better angel from my side,
And would corrupt my saint to be a devil,
Wooing his purity with her foul pride.

And whether that my angel be turn’d fiend,
Suspect I may, yet not directly tell,
But being both from me both to each friend,

I guess one angel in another’s hell.
Yet this shall I ne’er know, but live in doubt,
Till my bad angel fire my good one out.

Good and Evil
(Andrej Vystropov: n. 1961)

CXLIV

Meus dois amores de consolo e de aflição
Como dois anjos me dominam por igual:
O anjo do bem é um formosíssimo varão,
E uma mulher de cor bem má o anjo do mal.

Para levar-me para o inferno mais depressa
Meu feminino mal tira o anjo do meu lado
E só por transformá-lo em diabo se interessa,
Solicitando-o com um ardor abominado.

Se o anjo se fez demônio, eis ponto alto encoberto:
Bem posso desconfiar, porém não asseguro:
São amigos, e como eu não os vejo perto,

Que um esteja no inferno do outro conjeturo.
Sobre isso viverei em dúvida, porém,
Até que o anjo do mal expulse o anjo do bem.

Referência:

SHAKESPEARE, William. Sonetos. Tradução e introdução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo, SP: Hedra, 2008. p. 126-127.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Satã (IV): Cruz e Sousa

“O diabo tem as mais amplas perspectivas relativamente a Deus, por isso se mantém tão distante dele: o diabo, quer dizer, o mais antigo amigo do conhecimento”.

(NIETZSCHE, 2001, p. 86)

 

“O diabo nada mais é que o ócio de deus a cada sete dias”.

(NIETSCHE, 2001, p. 6).

 

Como já afirmara Jamil Almansur Haddad, em seu primoroso ensaio à obra máxima de Baudelaire – repitamos, “As Flores do Mal” –, o “satanismo brasileiro”, originário da adoção de práticas maçônicas, seria anterior à influência da obra do autor francês sobre as letras nacionais:

 

A importância desta excursão através do satanismo brasileiro reside menos em acentuar a influência do satanismo de Baudelaire do que em demonstrar que, com tudo o que se possa afirmar da força do seu satanismo como poder de influxo literário, tínhamos condições sociais, contemporâneas talvez dos primeiros tempos da nacionalidade, para propiciar esse entendimento com o Diabo (HADDAD, 1984, p. 30).

 

Daí porque não seria de se estranhar, por exemplo, que um autor como Cruz e Sousa, um dos maiores – se não for mesmo o maior! – escritor brasileiro do período simbolista, tenha sofrido a “tentação” de colocar, circunstancialmente, o seu talento a serviço de Satã. Informe-se, por ora, que apesar de haver tentado ingressar numa Loja Maçônica, até onde se sabe, Cruz e Sousa não foi aceito, ou aceito, sob reservas, com um estatuto particular (OLIVEIRA NETO, 2010, p. 17).

 

Em “Satã”, o soneto que dedicou a Lúcifer, o poeta catarinense – ou seria melhor dizer mineiro? – se esmera em descrevê-lo no esplendor de sua forma, rebelde e pleno de glória, provocativamente designado por “Deus triunfador dos triunfadores justos”, epíteto que, muito provavelmente, o Eterno deve considerar uma insolência obscena (rs)!

 

Suspeito que uma leitura transversal do poema acabe por demonstrar que haja alguma identidade do próprio poeta com a entidade mítica que descreve: negro como era, Cruz e Sousa talvez não se sentisse confortável no meio social da época, e toda a sua obra quiçá tenha se constituído numa evocação inconformista por outras instâncias de beleza e estados d’alma. Quem sabe?!

 

J.A.R. – H.C. 

 

Cruz e Sousa

(1861-1898)

 

Satã

 

Capro e revel, com os fabulosos cornos

Na fronte real de rei dos reis vetustos,

Com bizarros e lúbricos contornos,

Ei-lo Satã dentre os Satãs augustos.

 

Por verdes e por báquicos adornos

Vai c’roado de pâmpanos venustos

O deus pagão dos Vinhos acres, mornos,

Deus triunfador dos triunfadores justos.

 

Arcangélico e audaz, nos sóis radiantes,

A púrpura das glórias flamejantes,

Alarga as asas de relevos bravos...

 

O Sonho agita-lhe a imortal cabeça...

E solta aos sóis e estranha e ondeada e espessa

Canta-lhe a juba dos cabelos flavos!

 

Gravura de Satã

(Gustave Doré: 1832-1883)

 

Referências:

 

CRUZ E SOUSA. Satã. In: __________. Broquéis. Ensaio Introdutório de Ivan Teixeira. São Paulo: Edusp, 1994. p. 53-54.

 

HADDAD, Jamil Almansur. Baudelaire e o Brasil. In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 7-78.

 

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e do mal: ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Tradução de Márcio Pugliesi. Curitiba (PR): Hemus, 2001.

 

OLIVERIA NETO, Godofredo. Cruz e Sousa: o poeta alforriado. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. (Personalidades Negras)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Satã (III): Charles Baudelaire

“Encontrei a definição de beleza, da minha beleza. É uma coisa apaixonada e triste [...] Não consigo imaginar a beleza onde não haja adversidade [...] É difícil para mim não concluir que o tipo mais perfeito de beleza viril é Satã – ao modo de Milton”.

(BAUDELAIRE apud LINK, 1998, p. 192)

 

Para introduzir o internauta no tão caro tema da presença de Satã na poesia do francês Charles Baudelaire, transcrevemos, literalmente, uma passagem do livro “Uma História do Diabo: séculos XII-XX”, de autoria do historiador francês Robert Muchembled (2001, p. 259):

 

[Para Baudelaire], o diabo é, ao mesmo tempo, íntimo e totalmente outro. Cético em relação à explicação pela ciência, rejeitando o ateísmo, de cultura católica sem ser ortodoxo, ele considera conjuntamente a alienação e o Mal como a mais profunda realidade da existência humana. Em cada ser humano, escreve ele em seu ‘Diário íntimo’, existem simultaneamente duas tendências, uma que o impulsiona para Deus, outra para Lúcifer. O Mal é, ao mesmo tempo, atrativo e destruidor. O demônio é tanto o campeão da liberdade quanto a encarnação da hipocrisia. Ele representa uma força externa e real: ‘A mais bela armadilha do diabo é persuadir-nos de que ele não existe’, explica Baudelaire aos céticos ou aos que querem louvar os progressos do Iluminismo. Ele age, porém, tanto no espírito do homem quanto por imagens e desejos destruidores. Alguns chegaram a acusar o poeta de satanismo, pois ele afirmou: ‘Satã é o mais perfeito tipo de beleza viril’, e proclamou em ‘As Litanias de Satã’: ‘Meu caro Belzebu, eu te adoro’. A imagem que ele representa é, na realidade, muito complexa, ainda mais pelo fato de ter-se modificado ao longo da vida. Por um lado, este pensador impregnado de uma visão pessimista do homem lembra, assim, a importância da religião aterrorizante que reinou sobre o Ocidente no início da Modernidade. Por outro, ele descobre em si mesmo abismos, contradições, flores do mal cujas raízes ele não identifica claramente.

 

Baudelaire, segundo o poeta e tradutor Ivan Junqueira (2012, p. 69), deve em grande parte aos contos de Hoffmann e à mística de Swedenborg a sua fantasmagoria gótica e o satanismo. Nesse contexto, apesar de, praticamente, não se discutir a sua vocação cristã, o que “mais desconcerta a quem frequente a poesia de Baudelaire é perceber a fáustica oscilação entre Deus e o Diabo, o que leva amiúde à prática das mais ingênuas e primitivas formas de maniqueísmo” (JUNQUEIRA, 2012, p. 80).

 

Há quem também, qual Haddad (1984, p. 29), interprete o satanismo do poeta como meramente literário, com toda a sua manifesta representação simbólica – assim como também presente, por influência, em certos autores brasileiros –, mas não exatamente um satanismo capaz de cultos e rituais macabros, num altar efetivamente erigido ao “Anjo Caído”.

 

No já mencionado As Litanias de Satã, o poema que ora trazemos para ilustrar o tema em epígrafe, Baudelaire adota terminologias notoriamente litúrgicas, e a cada verso, em progressão, faz ressoar blasfêmias delirantes, no intento de tornar ostensiva a sua sombria ambição poética.

 

Dir-se-ia que a incompreensão dos mortais acerca dos motivos pelos quais Deus ciosamente guarda as “suas pedras preciosas” – explicitamente, os seus propósitos – leva-nos a confiar em Satã para que no-las revele. E o progresso científico, que nos converte em “outros deuses” criadores de realidades, configuraria, por conseguinte, uma transgressão insolente perante o Eterno, mitologicamente metaforizada pela figura de Prometeu.

 

Afinal, outro não seria o motivo por que Baudelaire, na oração final do poema, evoca o sono eterno sob a árvore da Ciência, junto a Satã, em cuja fronte o poeta espera ver os seus insignes ramos florescer!

 

Enfatize-se, por derradeiro, que “As Litanias de Satã” faz parte da seção de “As Flores do Mal” denominada “Revolta”, a denotar que os poemas ali inseridos nada mais são do que expressão de um “mal-estar” do vate francês, em face do estado de “queda” no qual se encontrava, não saberia dizer se momentâneo ou reiterado.

 

Em qualquer dos casos, se há pertinência no título da obra adotado por Baudelaire – “As Flores do Mal” –, que outra alegoria mais propícia se poderia associar ao mal que não fosse exatamente a de Satã?!

 

E já que Baudelaire vê no Satã de Milton o referencial prototípico da beleza viril, anexamos também, mais abaixo, uma das belas gravuras criadas pelo francês Gustave Doré, para o clássico “Paraíso Perdido”, do precitado escritor inglês.

 

Então aí temos, numa síntese pouco frequente, toda a potência das palavras e das imagens a evocar a beleza do arauto de todos os males da humanidade (rs).

 

J.A.R. – H.C. 

 

Charles Baudelaire

(1821-1867)

 

Les Litanies de Satan

 

Ô toi, le plus savant et le plus beau des Anges,

Dieu trahi par le sort et privé de louanges,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Ô Prince de l’exil, à qui l’on a fait tort

Et qui, vaincu, toujours te redresses plus fort,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui sais tout, grand roi des choses souterraines,

Guérisseur familier des angoisses humaines,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui, même aux lépreux, aux parias maudits,

Enseignes par l’amour le goût du Paradis,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Ô toi qui de la Mort, ta vieille et forte amante,

Engendras l’Espérance, – une folle charmante!

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui fais au proscrit ce regard calme et haut

Qui damne tout un peuple autour d’un échafaud.

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui sais en quels coins des terres envieuses

Le Dieu jaloux cacha les pierres précieuses,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi dont l’oeil clair connaît les profonds arsenaux

Où dort enseveli le peuple des métaux,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi dont la large main cache les précipices

Au somnambule errant au bord des édifices,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui, magiquement, assouplis les vieux os

De l’ivrogne attardé foulé par les chevaux,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui, pour consoler l’homme frêle qui souffre,

Nous appris à mêler le salpêtre et le soufre,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui poses ta marque, ô complice subtil,

Sur le front du Crésus impitoyable et vil,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Toi qui mets dans les yeux et dans le coeur des filles

Le culte de la plaie et l’amour des guenilles,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Bâton des exilés, lampe des inventeurs,

Confesseur des pendus et des conspirateurs,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Père adoptif de ceux qu’en sa noire colère

Du paradis terrestre a chassés Dieu le Père,

 

Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!

 

Prière

 

Gloire et louange à toi, Satan, dans les hauteurs

Du Ciel, où tu régnas, et dans les profondeurs

De l’Enfer, où, vaincu, tu rêves en silence!

Fais que mon âme un jour, sous l’Arbre de Science,

Près de toi se repose, à l’heure où sur ton front

Comme un Temple nouveau ses rameaux s’épandront!

 

Gravura de Satã

(Gustave Doré: 1832-1883)

 

As Litanias de Satã

 

Ó tu, o Anjo mais belo e o mais sábio Senhor,

Deus que a sorte traiu e privou do louvor,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que és o condenado, ó Príncipe do Exílio,

E que, vencido, sempre emerges com mais brilho,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, sábio e grande rei do abismo mais profundo,

Médico familiar dos males deste mundo,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, cujas graças ao leproso e ao pária cedem

Com a lição do amor o próprio gosto do Éden,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Ó tu, o que da Morte, a tua velha amante,

Engendraste a Esperança – a louca fascinante!

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que dás ao proscrito a fronte soberana,

Que em torno de uma forca um povo inteiro dana,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que bem sabes onde, nas terras mais zelosas,

Cioso Deus guardou as pedras mais preciosas,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, cujo olhar conhece os fundos arsenais,

Em que dorme sepulto o povo dos metais,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Ao sonâmbulo a errar à borda de edifícios.

Tu, cuja larga mão esconde os precipícios

 

Tem piedade. Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que magicamente abrandas ossos ralos,

Do ébrio retardatário a quem pisam cavalos,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que ao homem – nas mãos da desventura um títere –

Ensinaste a juntar enxofre com salitre,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu que impões tua marca, ó cúmplice sutil,

Sobre a fronte de Creso, que é impiedoso e vil,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Tu, que na alma e no olhar destas mulheres pões,

O culto da ferida e o amor dos farrapões,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Do exilado bastão, lâmpada do inventor,

Confessor do enforcado e do conspirador,

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Pai adotivo dos que, em sua ira sombria,

Deus Pai pôde expulsar do paraíso um dia.

 

Tem piedade, Satã, desta longa miséria!

 

Oração

 

Glória e louvor a ti, Satã, pelas alturas

Do Céu em que reinaste, e nas furnas obscuras

Do Inferno em que vencido és sonho e sonolência!

Faze que esta alma um dia, à árvore da Ciência,

Repouse junto a ti, quando em tua cabeça,

Tal qual um templo novo os seus ramos floresça!

 

Referências:

 

BAUDELAIRE, Charles. As litanias de Satã. In: __________. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 286-287.

 

HADDAD, Jamil Almansur. Baudelaire e o Brasil. In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 7-78.

 

JUNQUEIRA, Ivan. A arte de Baudelaire. IN: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. (Saraiva de Bolso). p. 61-117.

 

LINK, Luther. O diabo: a máscara sem rosto. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

 

MUCHEMBLED, Robert. Uma história do diabo: séculos XII-XX. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001.