Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Hippolyte Taine – Memórias Felinas

Temos aqui mais um soneto no qual sobressai a figura do gato, datado de 1883, e incorporado à obra “À Trois Chats, Douze Sonnets”, do crítico e historiador francês Hippolyte Taine, anteriormente já neste blog presente, em outro poema, contudo.

A versão em português, como de praxe para os casos em que não há indicação do tradutor, é de minha autoria – e por ela sou responsável pelos erros e acertos (rs).

J.A.R. – H.C.

Les Souvenirs d’un Chat

Il siège au coin du feu, les paupières mi-closes,
Aspirant la chaleur du brasier qui s’éteint;
La bouilloire bouillonne avec des bruits d’étain;
Le bois flambe, noircit, s’effile en charbons roses.

Le royal exilé prend de sublimes poses;
Il allonge son nez sur ses pieds de satin;
Il s’endort, il échappe au stupide destin,
A l’irrémédiable écroulement des choses.

Les siècles en son cœur ont épaissi leur nuit,
Mais au fond de son cœur, inextinguible, luit
Comme un flambeau sacré, son rêve héréditaire:

Un soir d’or, le déclin empourpré du soleil,
De fûts noirs de palmiers sur l’horizon vermeil,
Le grand fleuve qui roule entre deux murs de terre.


As Recordações de um Gato

Senta-se ele próximo ao fogo, com as pálpebras semicerradas,
A aspirar o calor da brasa que se extingue;
Borbulha a chaleira com os ruídos do estanho;
A lenha flamba, tisna, desfaz-se em rubros carvões.

O exilado real assume poses sublimes;
Alonga o nariz sobre os seus pés de cetim;
Adormece e assim escapa ao obtuso destino,
À irremediável ruína das coisas.

Os séculos em seu coração tornam sua noite mais densa,
Mas no fundo de seu peito, inextinguível, brilha
Como uma tocha sagrada, o seu sonho hereditário:

Uma noite de ouro, o ocaso púrpura do sol,
Troncos escuros de palmeiras no horizonte vermelho,
E o grande rio a fluir entre duas barreiras de terra.

Referência:

TAINE, Hippolyte. Les Souvenirs d’un Chat. In: NOVARINO-POTHIER, Albine (Éd.). Le chat em 60 poèmes. Paris: Omnibus, 2013. p. 27.
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terça-feira, 29 de abril de 2014

Mensalão – Troço de Doido


O presidente e ministro do STF, Joaquim Barbosa, veiculou nota oficial ontem (28.4.14), refutando o caráter político do julgamento do “Mensalão”, sob o argumento de que a Ação Penal 470 teria sido conduzida de forma “absolutamente transparente”.

Trata-se, obviamente, de uma réplica às declarações do ex-presidente Lula de que o referido julgamento teria sido 20% jurídico e 80% político, réplica essa que já havia sido feita, precedente e extraoficialmente, pelo também ministro Marco Aurélio, para quem o depoimento de Lula seria um “troço de doido”.

Pois bem: em que pesem tais pronunciamentos ministeriais, todos os procedimentos que levaram os réus ao cumprimento de suas penas deixam transparecer determinadas “veleidades judiciais” – para usar um eufemismo –, a começar pela decisão exarada por Joaquim Barbosa, para que os condenados fossem recolhidos ao presídio, sem definição do regime da pena – o que os levou à detenção em regime fechado.

E daí a uma outra ilegalidade patrocinada exatamente por um colegiado do Judiciário que deveria primar pela defesa dos direitos dos cidadãos: já se passaram cinco meses da prisão de José Dirceu e este ainda permanece em cumprimento de pena sob regime fechado, quando a duração da pena imposta prescreve o regime semiaberto.

Nota-se por estas e outras decisões, obviamente lavradas pelo presidente daquele órgão, que não há apenas um componente jurídico em todos os expedientes associados à causa, mas que o político se inscreve de modo resolutivo como condição ao que vem sendo determinado desde a cúpula do STF sobre a matéria.

Diga o presidente do STF o que disser, data vênia, suas decisões, nesse mister, merecem justificações muito melhor delimitadas no âmbito do regime democrático de direitos. Ou teremos voltado às instituições autoritárias das décadas de 60 a 80?

Aliás, se nos for permitido conjecturar sobre o que está por trás dessa ilegalidade olímpica, diria que a detenção em regime fechado de José Dirceu tira de circulação, do presente cenário político pré-eleitoral, um articulador dos maiores entre os quadros do Partido dos Trabalhadores. Ou seja: seria uma decisão da Justiça, deliberada com os “olhos bem abertos”.

E mais: tal decisão referente à execução penal de José Dirceu acaba por lhe oferecer razões que de outra forma seriam dificilmente sustentáveis, tornando-o uma “vítima”, salvo entendimento em contrário, de decisão unilateral sem fundamentação jurídica. E neste ponto, abstenho-me de articular qualquer arbítrio, positivo ou negativo, em relação à figura pública do político petista!

Por isso, vai aqui uma sugestão: o STF deveria levar ao conhecimento da sociedade as justificações ou os motivos pelos quais tomou a decisão que tomou! Afinal, por muito menos, conheceu-se o juízo de valor de Barbosa, quando resultou vencido nos embargos infringentes, a respeito do ilícito de formação de quadrilha: dirigindo-se aos seus pares, empregou o termo “sanha reformadora” para adjetivar a decisão então adotada, sob a opinião de que não havia respaldo legal para acolher tal recurso.

Pois bem: se, mais à frente, em outro ponto dos mesmos autos, há respaldo legal para a adoção do multicitado regime semiaberto, não acolhê-lo é uma afronta a um presumível “direito subjetivo do réu”. Ou não?

Se o julgamento do “Mensalão” foi jurídico ou político, a sociedade – e não apenas a imprensa que é contrária ao Governo Federal – saberá apreciar melhor do que ninguém o que lhe vai pelas entrelinhas.

E por fim: se há desproporção matemática nos números enunciados por Lula – um “troço de doido” –, por outra, veicular a ideia de que a Ação Penal 470 teve um julgamento 100% jurídico também está fora de cogitação!

J.A.R. – H.C.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Aldo Pellegrini – Um Gato Inexplicável

Da Argentina até a França. Agora em retorno à Argentina, para reproduzir um poema com os vestígios das criações surrealistas de Aldo Pellegrini: um “gato inexplicável” ronda entre a poesia e a filosofia, a imaginação e a razão, a intuição e o intelecto, para, ao final, embrenhar-se nas hipóteses da quase paranormalidade!

No entanto o gato de Pellegrini é, obviamente, um gato alegórico, assim como o elefante imaginado por Drummond. Somos nós mesmos, plenos de máscaras ou pantomimas, de mãos que não são “nossas” a manipular os fios de um mundo contingente.

Na hora mais profunda do “gato inexplicável”, assim como no momento mais escuro da alta madrugada, é que, pela remoção dos disfarces, sobrevém a face mais luminosa do felino, sem tons ilusórios, inautênticos. Um gato pleno e estável; equilibrado, portanto!

Não saberia mensurar o quanto de associação houve, em tal interpretação, entre o texto de Pellegrini e os deslindes da alma humana, elaboradas por Bergman em suas películas. Mas os enredos de “Da Vida das Marionetes”, ou mesmo de “Persona”, parecem-me tão clarividentes sobre o quanto existe de movediço em nossas reações, que conectá-los à hora do “gato inexplicável” não chega a ser, exatamente, uma impropriedade.

Vai gato, viver a vida de um lídimo felino – e não de suas sete falsas “personas”!

J.A.R. – H.C.

Aldo Pellegrini
(1903-1972)

La Máscara de la Medianoche

La casa
es una sombra del vértigo
que agita las manos de los moradores de la espera
un único juguete
                   la máscara
delante del gato inexplicable
el ente que detiene las horas
la apacible inexistência de la noche, del tiempo
vive la multitud en uno
¿a quién puede sorprender
el gato inmóvil que contempla la espera?
las sombras cubren el muro de la pequeña ausencia
no existe la multitud, no existe uno
sólo las manos que se sumergen cada vez más en la sombra
para beber con extraña avidez el cálido licor nocturno
¿a quién puede sorprender
la visita de la pequeña ausência envuelta en su repetido vértigo?
la única vigilia de la máscara
que despierta a los ausentes
que detiene la hora del gato inexplicable
un rayo de luz
hace más profundas las sombras
la casa
cesa de girar
la inmovibilidad se arranca la máscara.

                    (El muro secreto - 1949)


A Máscara da Meia-Noite

A casa
é uma sombra da vertigem
que agita as mãos dos moradores da espera
um único brinquedo
                   a máscara
diante do gato inexplicável
o ente que detém as horas
a tranquila inexistência da noite, do tempo
vive a multidão em nós
a quem poderá surpreender
o gato imóvel que contempla e espera?
as sombras cobrem o muro da pequena ausência
não existe a multidão, nós não existimos
apenas as mãos que se adentram cada vez mais na sombra
para beber com estranha avidez o cálido licor da noite
a quem poderá surpreender
a visita da pequena ausência envolta em sua reiterada vertigem?
a única vigília da máscara
que desperta os ausentes
que detém a hora do gato inexplicável
um raio de luz
torna as sombras mais profundas
a casa
cessa de girar
a imobilidade, arranca-se a máscara.

                    (O muro secreto - 1949)

Referência:

PELLEGRINI, Aldo. La Máscara de la Medianoche (A Máscara da meia noite). In: JOZEF, Bella (Sel. e Trad.). Poesia argentina: 1940-1860. Edição bilingue. São Paulo: Iluminuras, 1990. p. 28-29.
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sábado, 26 de abril de 2014

Jacques Prévert e o Gato que Faz as Coisas pela Metade

Passando, agora, de Buenos Aires a Paris, selecionamos uma interessante poesia do poeta e roteirista francês Jacques Prévert, contando-nos as aventuras de um gato que resolveu devorar um pássaro de uma garota, mas não o fez por completo, deixando alguns despojos da ave. E então...

Se não for dispensável a alusão, poderia informar que Jacques Prévert é autor do roteiro do famoso filme “O Boulevard do Crime”, de 1945, cujo nome original é “Les Enfants du Paradis”, “As Crianças do Paraíso” em tradução literal, dirigido pelo não menos renomado cineasta Marcel Carné.

Trata-se de uma obra que os cinéfilos não podem deixar de assistir: a película retrata o dia a dia da vida boêmia de Paris, seus teatros e cabarés. Nela sobressaem os diálogos criados por Prévert, numa sintaxe bastante próxima à das criações poéticas.

Bons tempos aqueles, lá pelos inícios dos anos 80, quando a Associação de Críticos Cinematográficos do Pará patrocinava sessões de grandes filmes no Cine Guajará e, posteriormente, no auditório da sede social do Grêmio Literário e Recreativos Português. Foi nessa época que tive o prazer de assistir à precitada obra cinematográfica.

J.A.R. – H.C. 
Jacques Prévert e o seu Gato
(1900-1977)

Le Chat et L’Oiseau

Un village écoute désolé
Le chant d’un oiseau blessé
C’est le seul oiseau du village
Et c’est le seul chat du village
Qui l’a à moitié dévoré
Et l’oiseau cesse de chanter
Le chat cesse de ronronner
Et de se lécher le museau
Et le village fait à l’ouseau
De merveilleuses funérailles
Et le chat qui est invité
Marche derrière le petit cercueil de paille
Où l’oiseau mort est allongé
Porté par une petite fille
Qui n’arrête pas de pleurer
Si j’avais su que cela te fasse tant de peine
Lui fit le chat
Je l’aurais mangé tout entier
Et puis je t’aurais raconté
Que je l’avais vu s’envoler
S’envoler jusqu’au au bout du monde
Là-bas où c’est tellement loin
Que jamais on n’en revient
Tu aurais eu moins de chagrin
Simplement de la tristesse
Et des regrets.

Il ne faut jamais faire le choses à moitié. 

Chat Saisissant un Oiseau
Pablo Picasso (1881-1973)

O Gato e o Passarinho

Um povoado entristecido
Escuta um pássaro ferido
Só havia aquele passarinho
E no povoado aquele gato
Que o devorou pela metade
E o passarinho não canta mais
O gato deixa de rosnar
E de lamber o seu focinho
E tem da aldeia o passarinho
Maravilhoso funeral
E o gato que foi convidado
Segue atrás do caixãozinho de palha
Em que se estende o morto passarinho
Que uma garota carrega
Chorando sem parar
Se eu soubesse que isto te causaria tanta dor
Lhe diz o gato
Tê-lo-ia comido todo
E em seguida contaria
Que o vi fugir voando
Voando para o fim do mundo
Lá longe e tão distante
Que de lá ninguém voltou
Terias bem menor desgosto
Alguma tristeza somente
E um pouco de saudade.

Não se deve fazer nada pela metade.

Referência:

PRÉVERT, Jacques. O gato e o passarinho. In: VEIGA, Cláudio (Org. e Trad.). Antologia da poesia francesa: do século IX ao século XX). Edição bilíngue. Rio de Janeiro: Record, 1991. p. 388-391.
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sexta-feira, 25 de abril de 2014

Borges e o Domínio Interditado e Secreto do Gato

Borges, um de meus poetas diletos, também foi autor de poema dedicado à figura de um gato que, estando ao alcance dos lentos afagos de seu dono, ainda assim não se deixa perscrutar em sua solidão e segredo.

Distintamente de muitos outros poemas aqui postados tendo o bichano por tema – tais como os de Baudelaire, nos quais os atributos do gato aparecem com significados algo ambivalentes, certas vezes a consistir em legítimas metáforas do universo feminino –, temos aqui, na criação do mestre argentino, um gato “ipsis litteris”: o brilho da pupila a possibilitar miradas à distância, mesmo que na penumbra; o comportamento independente e solitário, por meio do qual logra entesourar todos os seus mistérios; e a companhia humana cariciosa, brandamente aceita desde a noite dos tempos.

Aos leitores, o prazer do texto: o melhor, mesmo, é apreciar toda a perícia do labor poético de Borges no original, em espanhol. Para quem interessar possa, não obstante, ofereço uma tradução em seguida, com o máximo de literalidade possível.

J.A.R. – H.C. 


A Un Gato

No son más silenciosos los espejos
ni más furtiva el alba aventurera;
eres, bajo la luna, esa pantera
que nos es dado divisar de lejos.
Por obra indescifrable de un decreto
divino, te buscamos vanamente;
más remoto que el Ganges y el poniente,
tuya es la soledad, tuyo el secreto.
Tu lomo condesciende a la morosa
caricia de mi mano. Has admitido,
desde esa eternidad que ya es olvido,
el amor de la mano recelosa.
En otro tiempo estás. Eres el dueño
de un ámbito cerrado como un sueño.


A Um Gato

Não são mais silenciosos os espelhos
nem mais furtiva a madrugada aventureira;
és, sob a lua, essa pantera
que nos é dado divisar de longe.
Por obra indecifrável de um decreto
divino, buscamos-te em vão;
mais remoto que o Ganges e o poente,
tua é a solidão, teu o segredo.
Teu dorso condescende à morosa
carícia da minha mão. Tens admitido,
desde essa eternidade que já é olvido,
o amor da mão receosa.
Em outro tempo estás. És o dono
de um âmbito cerrado como um sonho.

BORGES, Jorge Luis. A un gato. In: __________. Obra poética. V. 2, 2. reimp. Madrid: Alianza Editorial, 1999. p. 334.
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quinta-feira, 24 de abril de 2014

Vinicius de Moraes – O Tema do Gato em Três Poemas

 Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Trazemos, agora, outros três poemas, da lavra do poetinha Vinicius de Moraes,  com passagens em que os felinos aparecem em suas proezas; colhidos, dois deles, no “site” oficial dedicado ao poeta, e um terceiro extraído de uma nova antologia de sua obra literária, organizada por Antônio Cícero e Eucanaã Ferraz.

J.A.R. – H.C. 

O Gato

Com um lindo salto
Lesto e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pega corre
Bem de mansinho
Atrás de um pobre
De um passarinho
Súbito, para
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga.

MORAES, Vinicius de. Gato. In: __________. A arca de Noé. Disponível em: http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/livros/arca-de-noe. Acesso em: 20 abr. 2014. 


Vazio
(Rio de Janeiro, 1933)

A noite é como um olhar longo e claro de mulher.
Sinto-me só.
Em todas as coisas que me rodeiam
Há um desconhecimento completo da minha infelicidade.
A noite alta me espia pela janela
E eu, desamparado de tudo, desamparado de mim próprio
Olho as coisas em torno
Com um desconhecimento completo das coisas que me rodeiam.
Vago em mim mesmo, sozinho, perdido
Tudo é deserto, minha alma é vazia
E tem o silêncio grave dos templos abandonados.
Eu espio a noite pela janela
Ela tem a quietação maravilhosa do êxtase.
Mas os gatos embaixo me acordam gritando luxúrias
E eu penso que amanhã...
Mas a gata vê na rua um gato preto e grande
E foge do gato cinzento.
Eu espio a noite maravilhosa
Estranha como um olhar de carne.
Vejo na grade o gato cinzento olhando os amores da gata e do gato preto
Perco-me por momentos em antigas aventuras
E volto à alma vazia e silenciosa que não acorda mais
Nem à noite clara e longa como um olhar de mulher
Nem aos gritos luxuriosos dos gatos se amando na rua.

MORAES,    Vinicius   de.   Vazio.   In: __________.  Poesias   avulsas.   Disponível em: http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/vazio. Acesso em 20 de abr. 2014.


Soneto do Gato Morto

Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade

De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.

Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.

MORAES, Vinícius de. Soneto do gato morto. In: __________. Nova antologia poética. Org. por Antônio Cícero e Eucanaã Ferraz. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2008. p. 170.
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quarta-feira, 23 de abril de 2014

Um Gato sem Conflitos Existenciais e um Gajo com um Eu Descentrado

Entre os poetas amantes de gatos, é óbvio, não poderia faltar o lusitano Fernando Pessoa. E ora vejam: Pessoa vai buscar a figura de um bichano para deixar transparecer a proverbial perda de identidade que, de algum modo, vem a explicar a pluralidade de heterônomos em que ele próprio se esvaiu.

 

Tal como interpreto o poema em apreço, percebe-se que o gajo não vê como sejam possíveis conflitos ontológicos no felino, pois não há como este se expressar verbalmente para explicar o que lhe vai no íntimo, suas sensações, seus anseios e ansiedades [puxa!, expressei-me aqui como se fosse detentor de uma prosa elegante como a do sociólogo Octavio Ianni (rs)]. Sente o que sente, e isto lhe basta para externalizar o seu interno por meio de seus instintos. Nisso consiste a sua “felicidade”!

 

Mas o íntimo do poeta é muito mais complexo: nele, há um embate – e, em Fernando Pessoa, poder-se-ia dizer até mesmo uma desconexão! – entre o ser e o conhecer, entre o imanente e o explicável, entre o objeto de conhecimento e o sujeito da análise que, em última instância, é o próprio ente que busca se conhecer. Eis aí o eterno problema da autorreferência com que tanto se debatia outro grande sociólogo: o alemão Niklas Luhmann!

 

Mas, digam-me, por qual razão Fernando Pessoa escolheu falar de um gato para referir-lhe a posse plena de um nada que é todo seu, quando poderia ter optado, por exemplo, por um cão?! (rs).

 

J.A.R. – H.C.

 

Fernando Pessoa

Poeta Português (1888-1935)

 

Gato que Brincas na Rua

 

Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

 

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.

 

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu.

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.

 


Referência:

 

PESSOA, Fernando. Gato que brincas na rua. In: __________. Obra poética. 8. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1994. p. 156.

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terça-feira, 22 de abril de 2014

Rilke – Gato Preto

Gatos para todos os gostos. Gatos agraciados pela pena de inúmeros poetas, de ontem e de hoje, daqui e dali. E muitas dessas criações vertidas ao português por grandes tradutores – como Augusto de Campos, a quem, alhures, já declinamos elogios aos seus belos e requintados trabalhos.


Augusto de Campos
(Poeta e Tradutor)

E aqui vai mais um poema: “Gato preto”, de Rilke, por meio do qual se parece sugerir que um bichano é capaz de recolher todos os olhares que lhe dirigimos, confiná-los dentro de si por dissimulação e, no retorno da mirada, fazer-nos ver, nesse mesmo olhar, nossa expressão reduzida à mera insignificância de um inseto – enquanto metáfora da pupila –, preso no âmbar amarelecido de seus olhos.

Ainda que um fantasma seja, existe algo suficientemente tangível, enquanto hipótese levantada pelo poema, com potencial para reproduzir um eco. Rilke projeta assim um clima inefável, misterioso, numinoso, sobrenatural até, para perscrutar o que acontece por trás da espessa pelagem de um gato negro.

Fantasmas levam-nos a suspenses e a temores do incerto que daí se propaga. E não há como deixar de associar tais referências à atmosfera das “Histórias Extraordinárias” de Allan Poe, especialmente à do conto com título similar ao da criação de Rilke: “O gato preto”.

J.A.R. – H.C.


 
Rainer Maria Rilke
(1875-1926)

Schwarze Katze 

Ein Gespenst ist noch wie eine Stelle,
dran dein Blick mit einem Klange stößt;
aber da, an diesem schwarzen Felle
wird dein stärkstes Schauen aufgelöst:

wie ein Tobender, wenn er in vollster
Raserei ins Schwarze stampft,
jählings am benehmenden Gepolster
einer Zelle aufhört und verdampft.

Alle Blicke, die sie jemals trafen,
scheint sie also an sich zu verhehlen,
um darüber drohend und verdrossen
zuzuschauern und damit zu schlafen.
Doch auf einmal kehrt sie, wie geweckt,
ihr Gesicht und mitten in das deine:
und da triffst du deinen Blick im geelen
Amber ihrer runden Augensteine
unerwartet wieder: eingeschlossen
wie ein ausgestorbenes Insekt.


Black Cat
Kain White (Austrália, n. 1981)

Gato Preto 

Mesmo um fantasma é ainda um lugar
em que teu olho com um som se choca;
mas nesse velo negro em que ele toca,
o olhar mais forte pode se apagar:

tal como um louco, quando em pleno acesso,
a martelar na escuridão, possesso,
para ante o estofo surdo de uma cela
e de súbito cessa diante dela.

A todos os olhares ele oculta
como se lhes quisesse sobrepor
o seu; indolente e ameaçador,
dorme com eles e o sepulta.
Mas ei-lo, de improviso, ressurreto –
a sua face adentra a tua face
e de repente encontras teu olhar
no âmbar desse olho-pedra circular:
fechado em si, como se ele abrigasse
a múmia seca de um inseto.


Referência:

RILKE, Rainer Maria. Gato preto. In: CAMPOS, Augusto de (Sel. e Trad.). Coisas e anjos de Rilke. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 248-249. (Coleção Signos’; n. 30)

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