Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 31 de março de 2014

Santo Agostinho – A Tentação do Olhar

O santo de Hipona nos traz uma reflexão sofre os “perigos” da beleza, que podem nos levar à concupiscência e à corrupção da alma, fazendo-a acobertar-se, em favor da visibilidade dos corpos, ou melhor, da matéria. E tais “perigos” entram-nos, primordialmente, pelos olhos, já que a visão é o mais poderoso dos sentidos – isso a despeito de a beleza também poder ser experimentada por outras vias sensoriais, como a audição (ah! a poderosa sugestão da música de Mozart!).

Como não poderia deixar de ser, os argumentos de Agostinho voltam-se às invocações de uma vida consagrada e virtuosa, em que a pureza da alma há de prevalecer sobre a exposição do corpo à degeneração moral e, com a idade, física.

O apelo do autor tem a contundência que se fundamenta em sua própria experiência de vida, porquanto – narra-nos ele em suas “Confissões” – antes de se dedicar aos serviços do Eterno, teve experiências absolutamente dissolutas e desregradas!

Mas um breve aparte: o que diria o santo homem se tivesse a capacidade de, num salto de séculos, vaguear pelas galerias e corredores do Museu do Vaticano, exposto ao possante efeito de suas obras de arte – em sua maior parte, é verdade, de caráter religioso? Ficaria a tartamudear como muitos turistas, diante do esplendor que emana do belo? Reprovaria as suas repercussões?

Vamos às palavras literais de Agostinho: os negritos, no corpo do excerto abaixo, são de minha autoria.

J.A.R. – H.C. 

Santo Agostinho
Philippe de Champaigne (1602-1674)

34. A Tentação do Olhar

(51) Resta-me falar da voluptuosidade destes olhos da minha carne. Confessarei essas fraquezas, a fim de que cheguem aos ouvidos do teu templo [1], ouvidos fraternos e piedosos. Concluiremos assim as tentações da concupiscência que ainda me perseguem, apesar dos meus gemidos e meu ardente desejo de ser revestido de minha habitação celeste [2].

Os olhos amam a beleza e a variedade das formas, o brilho e a luminosidade das cores. Oxalá tais atrativos não me acorrentem a alma. Que ela somente seja possuída por aquele Deus que criou essas coisas “tão boas” [3]. Somente ele é o meu sumo bem, não elas. Todos os dias, enquanto estou acordado, elas me importunam sem dar-me descanso, como dão as vozes que cantam, e outros sons, quando silenciam. Apropria rainha das cores, a luz que inunda tudo o que vemos, me alcança de mil maneiras, onde quer que eu esteja, durante o dia, e acaricia-me até mesmo quando me ocupo de outra coisa e dela me abstraio. Insinua-se com tal vigor que, se de repente me falta, a procuro com ansiedade, e se permanece ausente por muito tempo, minha alma se entristece.

(52) Ó luz, que Tobias contemplava quando, cego dos olhos do corpo, ensinava ao filho o caminho da vida e o precedia, caminhando com os passos do amor sem jamais se perder [4]; ou luz que Isaac via, tendo embora os olhos da carne oprimidos e velados pela velhice, quando, abençoando os filhos sem reconhecê-los, mereceu reconhecê-los ao abençoá-los [5]; ou luz que Jacó via quando, cego também pela idade avançada, irradiou, do coração ilumina do, clarões sobre as gerações futuras, representadas nos seus filhos, e impôs as mãos, misteriosamente cruzadas, sobre os filhos de José, seus netos, não segundo a ordem em que o pai exteriormente os colocara, mas segundo a ordem que ele distinguia interiormente [6]. É esta a luz verdadeira, a luz única, e os que a veem e amam são todos um. A outra luz corporal, aquela à que me referia, ameniza a vida dos cegos amantes do mundo, com sua sedutora e perigosa doçura. Contudo, os que sabem louvar-te por causa dessa luz, “ó Deus, criador de todas as coisas” [7], adotam-na nos hinos em teu louvor, sem por ela serem dominados no sono [8]. É assim que desejo ser. Resisto às seduções dos olhos, para que não se enredem os meus pés ao trilhar os teus caminhos. Elevo a ti olhos invisíveis, para que libertes os meus pés das armadilhas [9]. Tu o fazes continuamente, pois frequentemente eles se deixam prender. Não cessas de libertar-me, e eu, continuo a cair nas insídias esparsas por toda parte, porque não dormirás nem cochilarás, ó tu, que cuidas de Israel [10].

(53) Quantas e quantas coisas os homens não acrescentaram às seduções da vista, com a variedade das artes e com o trabalho de suas mãos, na roupa, nos calçados, nos vasos e objetos de todos os gêneros, e também na pintura e outras reproduções, indo além dos limites da necessidade, da moderação e de uma pia significação! Seguindo exteriormente suas criações, os homens abandonam interiormente o Criador deles, deturpando em si a obra divina. Eu, porém, ó meu Deus e minha glória, encontro também aí oportunidade de erguer um hino e um sacrifício de louvor [11] àquele que sacrifica por mim. A beleza que, através da alma do artista, é transmitida às suas mãos, procede daquela Beleza que está acima de nossas almas, e pela qual a minha alma suspira noite e dia [12]. No entanto, aqueles que fabricam ou admiram essas obras dotadas de beleza exterior, delas tiram o critério para um julgamento estético, e não a norma para bem usá-las. Todavia, essa norma aí está, mas eles não enxergam, do contrário, não se afastariam tanto de ti, mas te reservariam todas as suas forças [13], não as dispersando em prazeres que cansam. Eu mesmo, apesar de expor e compreender essas verdades, também me deixo prender por essas belezas exteriores; mas tu, Senhor, me libertas! Tu me libertas, porque “ante os meus olhos está a tua misericórdia” [14]. Caio miseravelmente, e tu me levantas misericordiosamente, às vezes sem eu perceber, apenas resvalado de leve, às vezes penosamente, por ter ficado preso ao chão.

Notas:

[1]    O templo de Deus são os fiéis de Cristo: cf. 3,16s e De Civ. Dei 17,8.
[2]   Cf. 2Cor 5,2.
[3]   Gn 1,31.
[4]   Cf. Tb 4,2.
[5]   Cf. Gn 27, 1-40.
[6]   Cf. Gn 48,3 e 49,28.
[7]   Ambrósio Hymni 4,1.
[8]   Agostinho faz alusão aos maniqueus, que consideravam o sol como criador de tudo: cf. De moribus manichaeorum 2,8.
[9]   Cf. Sl 24,15.
[10]  Cf. Sl 120,4.
[11]  Cf. Sl 115,17.
[12]  Cf. Sl 1,2.
[13]  Cf. Sl 58,10.
[14]  Sl 25,3.

Referência:

Agostinho, Santo [354-430]. A tentação do olhar. In: __________.  Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1984. (Coleção Espiritualidade). p. 305-308.

domingo, 30 de março de 2014

Baudelaire - Hino à Beleza

Baudelaire, depois de definir a beleza como um correlato de uma escultura feminina, fria e quase inacessível, com interfaces ambíguas, senão contraditórias, vem agora dedicar-lhe um hino: nele sobressai a referência às origens do belo, que tanto pode vir do divino quanto do satânico, ou por outra, das paragens dos céus quanto dos infernos!

Em suma: alusões colidentes, nos contrafortes do paradoxo, às fontes do belo, a congregar “bênçãos” e “crimes”, “claros” e “escuros”, “firmamento” e “abismos” etc.

São sete quadras com versos alexandrinos de rimas cruzadas, plenas de alegorias duais, a revelar a incômoda sensação de que o poeta tornou-se refém de polos antagônicos, os quais, nada obstante, são capazes de prover-lhe com a mesma sedução da beleza!

J.A.R. – H.C.

O Despertar de Vênus
(A Deusa da Beleza)
Charles-Joseph Natoire (1700-1777)

Hino à Beleza

Vens do fundo do céu ou sais do precipício,
Beleza? O teu olhar celestial e daninho,
Verte confusamente o crime e o benefício,
Pode-se pois dizer que és sempre igual ao vinho.

Nos olhos podes ser matutina e noturna;
E sabes perfumar como a borrasca à tarde;
Teus beijos são um filtro e tua boca uma urna:
Se à criança dão valor, tornam o herói covarde.

Das estrelas provéns ou dos negros abismos?
Segue-te como um cão a Fortuna encantada;
Semeias a alegria além dos cataclismos,
E tu governas tudo e respondes por nada.

Pisando mortos vais, com ar de desacato;
O horror em teu escrínio é uma joia fulgente,
Por berloque melhor só tens o assassinato:
Sobre o teu ventre vão dança amorosamente.

Uma efêmera vai ao teu encontro, ó vela,
E a chamuscar-se diz: “Bendito lampadário!”
O amoroso anelante a pender sobre a bela
Tem o ar de um moribundo a afagar o sudário.

Que tu venhas do céu ou do inferno, que importa?
Beleza! monstro ingênuo e de feição adunca!
Se teu olhar, teu pé, teu riso abrem a porta
De um infinito que amo e não conheci nunca?

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Se és a Fada que faz – olhos de penas de aves,
Ritmo, aroma, clarão, rainha de halos cheia –
Menos odiento o mundo e as horas menos graves.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 121-122.

P.s.: Aproveito esta postagem para fornecer um endereço de vídeo em que a sua autora, a Profª Cláudia Bonfim, faz uma análise, bastante interessante, exatamente sobre o mesmo tema das minhas últimas intervenções: a beleza em Baudelaire. Nele, chama a atenção a música empregada no início do vídeo, como que querendo fazer referência exatamente à natureza antitética da definição do belo, pelo autor francês: “O Bem e o Mal”, de Danilo Caymmi, interpretada por sua irmã Nana Caymmi.


O Bem e o Mal
(Danilo Caymmi)

Eu guardo em mim
dois corações
um que é do mar
um das paixões
um canto doce
um cheiro de temporal
eu guardo em mim
um deus, um louco, um santo
um bem e um mal.

Eu guardo em mim
tantas canções
de tanto mar
tantas manhãs
encanto doce
o cheiro de um vendaval
guardo em mim
o deus, o louco, o santo
o bem, o mal.

J.A.R. – H.C.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Definição da Beleza (II)


Dando continuidade à pretensa proposta de se definir o que seja a beleza, trazemos agora um soneto de Charles Baudelaire, a constar em sua obra-prima “As Flores do Mal”.

Ali está a beleza em seu talhe poético, sitiada entre poemas que descrevem pesadelos, liturgias satânicas, necrópoles, lápides enregeladas, enevoamentos, melancolias e coisas da espécie: Baudelaire se compraz em levar o leitor a “paraísos artificiais”.

A edição que possuo de “Flores do Mal”, já desde os anos 80, contém uma primorosa introdução do ensaísta paulista, de origem libanesa, Jamil Almansur Haddad (1914-1988). São 71 páginas (p. 7-78) e 194 notas, nas quais, sob o título “Baudelaire e o Brasil”, Jamil declina toda a sua erudição literária, com amplo conhecimento tanto da obra do autor francês, quanto do grupo de poetas brasileiros que se deixou influenciar, pronunciadamente, pelas diretrizes estéticas preconizadas pela escola simbolista.

Mas retornemos ao poema! A perfeição da beleza se transfigura, na composição de Baudelaire, por meio de um símbolo artístico: uma escultura incrustada na matéria. Uma ideia extática, relativa a algo bem tangível, feita refém na forma estrita e meticulosa do soneto. Explicitamente, um Baudelaire quase parnasiano, abraçando a causa da “arte pela arte”.

O poeta coloca em confronto o fluxo da vida, exposto às contingências das leis físicas de movimento, com o plano metafísico, onde a beleza encontraria a sua mais propícia morada. Todavia, mesmo aqui, Baudelaire não julga que a arte exista para abolir o movimento, as paixões, os bulícios da vida, mas sim para transfigurá-los, enobrecê-los, solenizá-los.

Uma beleza dúctil e fria, material e imaterial, a instilar na pena dos poetas primor e eternidade. Um conceito abstrato e de árduo acesso, meio fora do tempo: um enigma a ser decifrado solitariamente!

J.A.R. - H.C. 


A Beleza

Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra,
E meu seio, em que sempre o homem absorve a dor,
Feito é para inspirar aos poetas este amor
Silencioso e eternal assim como é a matéria.

Eu impero no azul, esfinge singular;
Sou coração de neve e branco cisne lento;
Porque desloca a linha, odeio o movimento,
E nem sei o que é rir, nem sei o que é chorar.

Sempre o poeta porém a esta grande atitude
Que eu pareço copiar de uma estátua distante,
Força é que, dia a dia, austero o ser, me estude;

Tenho para encantar este dócil amante,
Pondo beleza em tudo, os mais puros cristais:
Meu olhar, largo olhar de clarões eternais.

Referência:

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 113.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Definição da Beleza (I)


Vênus de Milo - Protótipo de Beleza

A beleza, enquanto objeto da estética ou, mais vastamente, da filosofia, já serviu de tema para inúmeros poemas, alguns deles presentes até hoje no firmamento irrecorrível a que sempre aportamos, quando perseguimos os lugares imaginários onde o prazer se alberga – como o que Bandeira denominou por “Pasárgada” –, ainda que, no plano terreno, tal não passe de um sítio arqueológico no contemporâneo Irã, tombado como patrimônio mundial pela Unesco (rs).

Mas vamos lá: recorro, em primeira instância, para nos fornecer uma primeira definição da beleza, ao soneto do poeta paulista Afonso Schmidt (1890-1964).

Nele se percebe um escopo menos iconoclasta dos conceitos a que comumente se associa o belo – as primícias do jardim edênico –, haja vista que alude também aos desertos da dor e da tortura. Seja como for, a percepção do poeta mostra-se plena, quando se reporta à beleza em seus três mananciais primários: a arte, a natureza e o domínio do humano.

Para apreciar!

J.A.R. – H.C.


Afonso Schmidt

A BELEZA

Neste crisol do coração, Beleza
Que iluminas a nossa noite escura,
És a Bondade – que se fez Grandeza
E a Dor sofrida – que se fez Doçura.

És a muda expressão da Natureza;
Beijo no amor, sorriso na candura,
Prece na morte, pranto na tristeza
E, para os poetas, mística tortura.

Ninfeia azul no pântano estagnado,
Flores brotando na aridez das lousas,
Ou mistério no páramo estrelado,

Em tudo o que nos cerca tu repousas,
Porque a Beleza é Deus manifestado
A nos sorrir pela expressão das cousas.

Referência:
SCHMIDT, Afonso. A beleza. In: VALADARES, Napoleão. De Gregório a Drummond: sonetos. Brasília: André Quicé, 1999. p. 167.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Hans Kelsen – Teoria Pura do Direito (Parte V)

Leia aqui a Parte IV.
(Parte V)
4     Apreciação Crítica
A obra Teoria Pura do Direito, de Kelsen, certamente ainda é um das referências no ramo do direito, pois busca assentar as bases daquilo que, para o autor, deveria ser a ciência jurídica, desprovida de elementos valorativos que a descaracterizam. Sob esse enfoque, ela submete à apreciação um tropel de esclarecimentos acerca de conceitos e questões jurídicas, com rigor metodológico e sistematização: a estrutura da norma, o ordenamento jurídico, a relação entre o direito e o Estado, a interpretação etc. Nisso está o seu inestimável mérito.
Não há como atribuir a Kelsen algum desvalor que possa decorrer de presumível incoerência expositiva ou doutrinária, pois a sua contribuição é um todo demarcado por vigor lógico e profundidade cognoscitiva. Ainda assim, persistem questões irrespondidas ou insuficientemente apreendidas pelo contributo do austríaco: a relação entre norma e conduta, a conexão entre eficácia e validade, a natureza da norma fundamental etc.
Partem elas, no mais das vezes, de seus principais fundamentos doutrinários, a saber, cientificismo, realismo, purismo, relativismo axiológico, formalismo, normativismo, perspectiva anti-ideológica, positivismo e antijusnaturalismo, a tal ponto de Enrique Aftalion e outros (1980, p. 851), em crítica sustentada pela escola egológica do direito, afirmar que a Teoria Pura do Direito não é ciência jurídica, como pretende o seu autor, mas filosofia jurídica, ou melhor, metodologia ou epistemologia jurídica, isto é, uma parte daquela.
O elenco de objeções que se faz à obra sob comento é tão extenso que não cabem em uma resenha previamente limitada em sua extensão, de sorte que, aqui, mencionam-se tão-somente as três mais recorrentes entre os seus comentadores:
(i)    Gustav Radbruch: o que se excluiu, na teoria pura, em nome dessa pureza – o direito natural – foi justamente o que faltou para se evitar a apropriação ideológica dessa teoria por regimes totalitários (VASCONCELOS, 2003, p. 194-195);
(ii)    Mario G. Losano: a norma fundamental nada mais é que do que uma aporia inconciliável com a própria definição de norma jurídica, bem assim com as demais partes da teoria pura; ademais, a descrição da norma fundamental oferecida por Kelsen não permite utilizá-la como fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, pois se confundem as proposições descritivas da ciência jurídica com as proposições prescritivas do ordenamento jurídico positivo ( 2010; p. 87 e 93); e
(iii)   Luis Recaséns Siches: a Teoria Pura do Direito é parcial e fragmentária, pois atenta unicamente para a dimensão normativa do direito, sendo alheia, portanto, às dimensões fáticas e valorativas, embora não as ignore; basta ver que a pureza a que se refere diz respeito ao método empregado por Kelsen, não ao próprio direito enquanto experiência humana (p. 141-142; 196-197).
Importante é a observação que faz o mencionado jurista Mario G. Losano no sentido de que as críticas a serem oferecidas à Teoria Pura do Direito, para serem mais fundamentadas, devem partir de uma perspectiva interna à própria teoria, pois se mostra claramente improdutivo opor explicações diversas à teoria kelseniana, como se o seu autor necessitasse ser doutrinado sobre a existência e sobre os méritos de outras direções de pesquisa, quer jurídicas quer extrajurídicas (2010, p. 73-74):
As críticas externas, ao contrário, se fundamentam, em última análise, num juízo de valor: a doutrina proposta substitui a de Kelsen, porque é considerada melhor. Assim fazendo, contudo, não se descobrem as incoerências internas da doutrina criticada e, portanto, não se justifica seu abandono em favor de outra, considerada melhor.
Como se infere, trata-se de observação similar à que se faz sobre o ponto de vista de adeptos do marxismo, os quais, presos a um reducionismo paralisante, expõem com convicção suas certezas, rejeitando todas as ideias que lhes sejam opostas, sob o argumento de expressarem valores burgueses [3]. Mas o certo é que ninguém ousará negar o engenho da explicação kelseniana, ainda que a sua descrição morfológica do direito deixe a paisagem jurídica suspensa “[...] no ar, no plano da pura normatividade lógica, máxime quando reduz o Estado à sua pura dimensão normativa” (REALE, 1998, p. 155).
NOTAS
[1].  Material condensado, constante no seguinte endereço eletrônico da internet: WIKIPEDIA. Hans Kelsen. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Hans_Kelsen>. Acesso em: 5 mar. 2014.

[2].  Por simplificação, deixar-se-á de fazer referência completa autor-data para as páginas em que se encontram eventuais passagens citadas nesta síntese. Sabendo-se, desde já, que se trata da obra mencionada no subitem I.1 ou nas referências finais, na edição então referida, serão apresentados tão somente os números das páginas em que aquelas se encontram. Na hipótese de menção a outras referências, serão elas apresentadas integralmente, nos moldes padronizados pela ABNT: (autor, ano, página).

[3].  As ciências sociais, sobretudo quando às voltas com seus pressupostos de auto-observação e de objetividade positivista, parecem convergir para situações paradoxais, a ponto de Michel Löwy (2003, p. 91) afirmar que, em tais situações, elas agem de modo similar ao Barão de Münchhausen, protagonista de uma velha história picaresca, segundo a qual, atolado num pântano (as motivações inconscientes-coletivas), com seu cavalo, e vendo que não contava com a ajuda de ninguém para salvá-lo, o mencionado personagem agarrou os seus próprios cabelos (autoanálise crítica) e, por meio deles, puxou-se para cima, saiu da lama, trazendo também seu cavalo entre as pernas, tirando-o do atoleiro.
REFERÊNCIAS
AFTALION, Enrique R.; OLANO, Fernando G.; VILANOVA, José. Introducción ao derecho. 11. ed. Buenos Aires: Cooperadora de derecho y ciencias sociales, 1980.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de: João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2009 (Biblioteca Jurídica WMF).

LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito: o século XX, V. 2. Tradução de: Luca Lamberti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 3. ed. São Paulo: Ed. RT, 1998.

SICHES, Luis R. Panorama del pensamiento jurídico en El siglo XX, tomo II. México – DF: Porrúa, 1963.
(FIM)

terça-feira, 25 de março de 2014

Hans Kelsen – Teoria Pura do Direito (Parte IV)

Leia aqui a Parte III.
(Parte IV)
VI.   DIREITO E ESTADO (p. 309-353)
O problema central da dinâmica jurídica é o dos diversos modos de criação do direito, ou seja, se suas obrigações nascem com o seu consentimento ou sem ele, e ainda contra a sua própria vontade. Essa distinção entre autonomia e heteronomia aparece, sobretudo, na teoria do direito público. Assim, podem-se distinguir dois métodos distintos de criação de normas e, por conseguinte, de Estado: (i) aquele em que o indivíduo que vai ser obrigado a cumpri-la participa de sua criação (democracia/república); (ii) e aquele em que as normas são criadas sem a sua participação (autocracia/monarquia).
Kelsen considera insatisfatória a distinção, essencial na moderna ciência do direito, entre direito público e direito privado. Refere-se ela a um princípio de classificação das relações jurídicas, em que o privado seria uma relação entre dois sujeitos iguais, e o público uma relação entre dois sujeitos na qual um está subordinado ao outro. A relação de direito privado seria, mais propriamente, uma relação jurídica tout court, enquanto que a relação de direito público seria uma relação de poder ou de domínio.
O valor superior atribuído a certos sujeitos firma-se numa diferença no modo de criação do direito. A ordem jurídica confere aos indivíduos qualificados como órgãos do Estado – a autoridade pública – o poder de obrigar os súditos mediante uma declaração unilateral de vontade, o que, para Kelsen, consistiria numa criação normativa autocrática. Por outro lado, os sujeitos ligados por um contrato participam na formação da norma à qual se submeteram, a constituir verdadeira criação jurídica democrática.
A distinção entre direito público e direito privado configura, para Kelsen, um dualismo de caráter ideológico, porquanto os caracteres democráticos e autocráticos se intercambiam na produção das normas, seja em um sistema econômico socialista seja em um sistema democrático, em particular entre as normas jurídicas gerais e as normas jurídicas individuais, intervindo em ambas os particulares e o Estado.
Outro dualismo tradicional entre o Estado e o direito, também com funções ideológicas, é o que apresenta o Estado como uma pessoa distinta da do direito e, assim, o direito que produz o Estado é ordem que se submete ao próprio Estado e com o qual se justifica: “E o direito só pode justificar o Estado quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do Estado, oposta à sua originária natureza, o poder, e, por isso mesmo, reta ou justa em um qualquer sentido” (p. 316).
Segundo o autor, nem toda ordem jurídica é um Estado, tampouco uma ordem jurídica supra ou interestatal do chamado direito internacional. Para chegar a ser um Estado, a ordem jurídica deve realizar a função específica de “[...] instituir órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho para criação e aplicação das normas que a formam; tem de apresentar um certo grau de centralização” (p. 317).
Como comunidade social, e de acordo com a teoria tradicional, o Estado requer população, território e poder (p. 318), poder esse que nada mais é do que a eficácia da ordem jurídica estatal: “Desta forma, o Estado [...] define-se como uma ordem jurídica relativamente centralizada, limitada no seu domínio espacial e temporal de vigência, soberana ou imediata relativamente ao direito internacional e que é [...] eficaz” (p. 321).
O Estado, para Kelsen, nada mais é do que uma pessoa jurídica ou um sujeito ativo de direitos e obrigações, à semelhança das corporações, e a atividade do Estado se expressa por intermédio de seus órgãos. As pessoas realizam atos, enquanto as pessoas jurídicas, como o Estado, efetuam funções. O Estado é uma construção auxiliar do pensamento jurídico.
As funções atribuídas ao Estado dividem-se, segundo a tradicional teoria do Estado, em três categorias: legislativa, administrativa (incluindo o governo) e a de jurisdição. Elas são realizadas sob o pressuposto de unidade jurídica, em conformidade com as normas que configuram os órgãos do Estado, por intermédio de seus funcionários.
Questionando-se sobre a hipótese de o Estado poder cometer ilícitos, assim disserta: “Como o ilícito é um fato definido na ordem jurídica, pode ele muito bem ser referido à unidade personificada desta ordem jurídica, ou seja, pode ser atribuído ao Estado” (p. 338).
Assoma, em seguida, o tema do Estado de direito. A Kelsen parece que não se pode afirmar que preexista um Estado anterior ou prévio à existência de seu direito, para logo submeter-se ao último. O direito é que regula a conduta dos homens e, com sua produção, os submete tanto quanto o Estado. Com o termo “Estado de direito” pretende-se aludir às exigências da democracia e à segurança jurídica, como uma espécie de autolimitação que se impõe o Estado como personificação da ordem jurídica:
Esta atribuição ao Estado, isto é, a referência à unidade de uma ordem jurídica e a personificação desta, daí mesmo resultante, é, como importa sempre acentuar, uma operação mental, um instrumento auxiliar do conhecimento. O que existe como objeto do conhecimento é apenas o direito (p. 346).
O direito dá origem ao Estado e não o contrário. A unidade de uma ordem jurídica pressupõe a existência do Estado e a correlação de ambos é indispensável sublinhar.
Todo Estado é um Estado de direito, motivo pelo qual a expressão, segundo Kelsen, mostra-se pleonástica. A divisão de poderes, a realização de suas funções conforme as normas e através de seus respectivos órgãos, com tribunais e garantias aos direitos das pessoas etc., tudo isso outorgaria ao Estado a qualidade de Estado de direito.
Intimamente vinculado às ideias anteriores é o tema da centralização e descentralização no Estado e que Kelsen relaciona com uma concepção estática ou dinâmica do direito. O Estado, como um sistema de normas, implica que estas possuem validade tanto no tempo quanto no espaço. O problema das divisões geográficas num território governado por um Estado remete à articulação territorial do próprio Estado, segundo os modelos unitário ou federal, atrelados a uma maior centralização ou descentralização de suas funções.
Quando se considera que as normas de um Estado valem para todo o território é evidente que estas são normas gerais. Caso se refiram a normas individualizadas em atos concretos de administração e de sentenças judiciais, somente se aplicam a uma parte do território do Estado e a algumas pessoas.
Por fim, o autor propõe a dissolução do dualismo entre direito e Estado. Epistemologicamente, não se pode sustentar, por um lado, que o Estado transcenda o direito e, por outro, a imanência do Estado no direito. Kelsen identifica nisso um resquício do jusnaturalismo, a enfatizar que o direito tem relação com a justiça. A identidade do direito e do Estado parece a Kelsen como o resultado da própria ordem normativa e de seu caráter coercitivo que desterra todo antropomorfismo e ideologia.
VII.  O ESTADO E O DIREITO INTERNACIONAL (p. 355-386)
Esta seção procura analisar a natureza jurídica de direito internacional, como um conjunto de normas que regulam o comportamento mútuo dos Estados. Como sanções específicas, o direito internacional estabelece as represálias e a guerra. A primeira é uma ação de intervenção − que o direito internacional proíbe sob circunstâncias diversas − na esfera dos interesses de outros Estados. Essa intervenção pode ser com ou sem normas. A segunda é um poder armado de um Estado dirigido a outro com algum propósito.
Quanto à guerra, há duas teses. Para a primeira, a guerra não é nem delito nem sanção. Para a segunda, a guerra somente é admitida como uma reação, ao abrigo do direito internacional, em face de que um Estado haja prejudicado os interesses ou os direitos de outro. Trata-se do princípio do bellum iustum ou guerra justa. As represálias e, em particular, as guerras causam danos às pessoas e a diversos bens de maneira irreparável, ainda que se trate de uma suposta guerra justa. Esses dois fenômenos, de alguma maneira, pensa Kelsen, deveriam ser enquadrados no direito.
O direito internacional, argumenta Kelsen, não tem órgãos que funcionem como uma divisão de trabalho, como sucede com o direito estatal. As normas que vigoram no direito internacional são resultado do costume, da convenção ou do tratado, elaboradas não por órgãos legislativos, mas pelos próprios Estados interessados ou implicados.
Na construção escalonada do direito internacional há normas gerais que obrigam e facultam a todos os Estados, expressas sob o princípio pacta sunt servanda: “Ela autoriza os sujeitos da comunidade jurídica internacional a regular, através de tratados, a sua conduta recíproca, quer dizer, a conduta dos seus órgãos e súditos em relação aos órgãos e súditos dos outros” (p. 359). As convenções, acordos e tratados no direito internacional têm um caráter mais particular e não valem para todos, mas apenas para os Estados signatários. O direito internacional, mediante suas normas, indica aquilo que se deve fazer ou omitir, mas não qual a pessoa indicada para tanto: “O direito internacional deixa à ordem jurídica de cada Estado a determinação deste indivíduo” (p. 361).
Isso significa que os efeitos da normatividade internacional criada pelos Estados e com consequências sobre seus súditos − os nacionais − ficam subordinados à normatividade estatal de cada Estado, para sua aplicação a casos particulares.
Para Kelsen, a partir de uma perspectiva epistemológica, é inevitável uma concepção monista ou unitária da relação entre os dois sistemas normativos, tanto do direito estatal como do direito internacional, porquanto. Isso ocorre em razão de que a norma fundante básica de cada Estado estabelece o princípio de coordenação, que implica a delimitação de sua esfera de validade normativa, mediante o qual se alcança não apenas a unidade como também a coordenação para a validade e eficácia normativa.
Para o propósito anterior, assinala Kelsen, deve existir uma terceira ordem superior que determine a produção e validade dos doutros dois. Isso se alcança mediante o princípio da delegação, que liga uma ordem normativa inferior à outra superior, ou então esta assinala como deve se produzir a norma inferior para dar-lhe validez dentro de limites, tanto a normas gerais como individualizadas. O princípio da delegação liga unitariamente as ordens normativas parciais. A propósito, Kelsen discorre do seguinte modo:
O direito internacional tem de ser concebido, ou como uma ordem jurídica delegada pela ordem jurídica estadual e, por conseguinte, como incorporada nesta, ou como uma ordem jurídica total que delega nas ordens jurídicas estaduais, supraordenada a estas e abrangendo-as a todas como ordens jurídicas parciais (p. 369-370).
Para Kelsen, a primazia de uma ou outra ordem normativa, seja a estatal ou a do direito internacional, parece-lhe que finalmente são falácias de conteúdo político que não se justificam e que a Teoria Pura do Direito exibe como tais e ante as quais se mostra indiferente por suas carências de justificação gnosiológica.
VIII. A INTERPRETAÇÃO (p. 387-397)
Para Kelsen, a interpretação é “[...] uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior” (p. 387), sendo basicamente de dois tipos: uma que levam a efeito os órgãos encarregados da aplicação do direito, e outra segundo o juízo de uma pessoa privada. Uma, por intermédio dos tribunais, e outra, por meio dos indivíduos, em especial, os advogados.
A relação entre um escalão superior e um inferior da ordem jurídica é uma relação, afirma Kelsen, de determinação ou vinculação ao regular a produção de uma norma jurídica, a sua aplicação e, eventualmente, o seu conteúdo. Não se trata de uma determinação completa, pois há de ficar uma margem, maior ou menor, de livre apreciação, de modo que “[...] a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato” (p. 388).
Na aplicação de uma norma, o legislador não pode nem deve prever todos os atos para que a norma se faça efetiva ou se individualize. Daí esse marco de indeterminação e discricionariedade da autoridade competente. Afirma Kelsen que a indeterminação na aplicação da norma pode ser intencional ou não intencional. No primeiro caso, é estabelecida por vontade do órgão que instaurou a norma que há de aplicar-se. Kelsen dá o exemplo da norma penal que faculta ao juiz impor uma sanção pecuniária ou a prisão. O segundo caso se produz quando a chamada vontade do legislador ou a intenção das partes num negócio jurídico não coincidem ou existe tal discrepância, que torna necessária a interpretação dos órgãos jurisdicionais.
Kelsen insiste em que muitas interpretações que se fazem no campo do direito levam a revolver conteúdos políticos e ideológicos, os quais não se podem evitar, tanto menos por parte dos advogados. Porém não se tratam de interpretações científicas próprias da ciência do direito. O mesmo acontece quando a jurisprudência fixa um só sentido à norma em nome da segurança jurídica. Tampouco as lacunas do direito são cobertas mediante uma só interpretação. Apreciar assim as coisas é uma ficção: “A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’” (p. 396).
(Fim da Parte IV)
Leia aqui a Parte V.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Hans Kelsen – Teoria Pura do Direito (Parte III)

Leia aqui a Parte II.
(Parte III)
V.    DINÂMICA JURÍDICA (p. 215-308)
A pluralidade de normas jurídicas forma um ordenamento somente quando a sua validade pode ser reconduzida a uma única norma, ou seja, a norma fundamental. Essa norma fundamental, enquanto fonte comum, representa a unidade na pluralidade de todas as normas que formam o ordenamento:
Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido, pela via de um raciocínio lógico, de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada de uma determinada forma − em última análise, de uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta (p. 221).
A norma fundamental de um ordenamento jurídico histórico ou concreto representa um fundamento hipotético, isto é, um pressuposto lógico-transcendental. Ao empregar essa terminologia, Kelsen faz clara alusão a Kant, para afirmar que se trata de uma estrutura lógica do pensamento jurídico, uma norma pensada que poupa qualquer remissão das demais normas a uma instância metajurídica. Desse modo, ela permite outorgar unidade lógica ao ordenamento jurídico e solucionar eventuais conflitos normativos.
As contradições entre normas, mais aparentes que reais, podem ser resolvidas pela busca de um sentido que não as contradiga logicamente – ainda que se possa fazê-lo também no âmbito material –, recorrendo-se à norma fundamental, conformadora de uma ordem jurídica específica.
Seguem, conectadas ao tema precedente, as alusões de Kelsen aos problemas da legitimidade e da efetividade de um ordenamento jurídico particular. Diz ele que uma ordem jurídica mantém-se válida até que ela termine por um determinado modo especificado por essa mesma ordem jurídica, ou até ser substituída por outra norma válida dessa mesma ordem. Tal é o princípio da legitimidade a operar em um ordenamento jurídico estatal, não aplicável, todavia, nas hipóteses de revolução ou golpe de Estado. Se a constituição válida é modificada ou substituída pela força, o princípio de validade deixa de operar. Na sequência de sua exposição, Kelsen passa a examinar a validade e a eficácia das normas. Desde logo, o autor rechaça que validade e eficácia sejam conceitos idênticos:
A fixação positiva e a eficácia são, pela norma fundamental, tornadas condição da validade. A eficácia é-o no sentido de que deve acrescer ao ato de fixação para que a ordem jurídica como um todo, e bem assim a norma jurídica singular, não percam a sua validade (p. 236).
A eficácia da ordem jurídica em seu conjunto é uma condição necessária para a validez de cada uma das normas que o integram. As normas de um ordenamento jurídico valem porque a norma fundamental é pressuposta como válida, porém aquelas têm validade enquanto tal ordenamento jurídico seja eficaz. A validade decai pelo desuso ou, com se diz em direito, pelo desuetudo, “[...] um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente” (p. 237).
A norma fundamental também gera a validade para a norma do direito internacional, ou melhor, a norma que produz o direito internacional é válida se um Estado a reconhece conforme a sua ordem jurídica ou constituição. Os Estados regulam suas relações recíprocas mediante tratados: “Nesta norma, consuetudinariamente criada, têm o seu fundamento de vigência as normas jurídicas do direito internacional criadas por tratados. Esta norma é usualmente formulada no princípio: pacta sunt servanda” (negrito nosso) (p. 241).
Kelsen entende por direito natural aquele que busca o fundamento de validade do direito positivo em uma norma independente dele mesmo − incluindo a própria norma fundamental −, à luz da qual se analisa se o direito positivo se adéqua ou não àquela norma. Trata-se de um modelo, em todo caso, axiológico ou uma espécie de padrão ou métrica ético-política para apreciar a presença ou não de justiça no âmbito de um determinado ordenamento jurídico positivo. Como se vê, o autor rejeita o direito natural como parâmetro para julgar o direito positivo, em virtude de que tal pretensão se afasta do pressuposto lógico-transcendental de origem e aplicação do direito, ao pretender remetê-lo a outras suposições − no caso a Deus ou à vontade da natureza – inadmissíveis para o alcance de conhecimentos científicos fundamentados em bases sólidas.
Passando ao tópico da estrutura escalonada da ordem jurídica, que serve de fundamento à ideia de pirâmide jurídica e compreende toda a última parte da dinâmica jurídica, permeada por inúmeros institutos do direito positivo, Kelsen observa que a ordem jurídica é um sistema de normas gerais e individuais, entrelaçadas entre si, de acordo com o princípio de que o direito regula a sua própria criação. Cada norma é criada conforme as prescrições de outra norma e, em última instância, de acordo com o que estabelece a norma fundamental que constitui a unidade do sistema:
Nesse caso, a norma fundamental − como constituição em sentido lógico-jurídico − institui como fato produtor de direito não apenas o ato do autor da constituição, mas também o costume constituído pela conduta dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica constitucionalmente criada (p. 249).
Kelsen faz distinção entre constituição material e constituição formal. A primeira faz referência à norma positiva através da qual é regulada a produção das normas jurídicas gerais, seja por meio consuetudinário seja por um ato legislativo, pelos órgãos e procedimentos nela estabelecidos. A segunda não apenas contém normas que regulam a produção de normas gerais, ou seja, a legislação, como também normas referentes a outros assuntos politicamente importantes, bem assim a forma pela qual ela poderá ser modificada.
O nível inferior à constituição se configura por normas geradas por via legislativa e pelo costume. É possível que haja contradições entre o direito legislado e o direito consuetudinário, as quais se derrogam segundo o princípio da lex posterior, isto é, a norma mais recente, via legislação, resolve diferenças e contradições entre leis e costumes anteriores.
De outra parte, a validade e a vigência do costume que condiciona o comportamento humano é limitado, “[...] na medida em que a aplicação de normas gerais produzidas por via consuetudinária aos casos concretos apenas se pode realizar através de direito estatuído” (p. 254), haja vista que só se pode operar mediante normas individuais, como as sentenças, a serem estabelecidas pelos órgãos aplicadores do direito.
Com relação à lei e ao decreto, referem-se às diversas modalidades, num escalão mais abaixo, classificadas quer quanto à produção quer quanto ao tipo de normas. Kelsen diferencia a lei em sentido material da lei em sentido formal. Enquanto a primeira designa toda norma jurídica geral, a segunda alude seja às normas jurídicas gerais que se revistam sob a forma de lei, publicadas de determinada maneira, seja a qualquer conteúdo que apareça sob essa forma. Por outro lado, os decretos, quer os regulamentares quer os decretos-leis, são “[...] normas gerais que provêm não do parlamento, mas de uma autoridade administrativa” (p. 255).
Seguindo nesse diapasão, Kelsen distingue as normas de direito formal das normas de direito material. Normas de direito formal são aquelas que regulam a organização e a atuação dos órgãos judiciais e administrativos, tais como os códigos de procedimentos civis e penais, bem assim o direito processual administrativo. Quanto às normas de direito material, são as normas gerais que determinam o conteúdo dos atos judiciais e administrativos, conformando os direitos civil, penal e administrativo.
No âmbito das fontes de direito, Kelsen julga que as principais são a legislação e o costume. Para o autor, o termo “fontes de direito” mostra-se plurissignificativo, pois nele cabe até mesmo o fundamento último de validade de uma ordem normativa jurídica: a norma fundamental. Numa acepção mais ampla, até mesmo não jurídica, pode designar todas as representações que, de fato, influam sobre a função de produção e de aplicação do direito, tais como os princípios morais e políticos, teorias jurídicas, pareceres de especialistas etc., ainda que devam “[...] ser claramente distinguidas das fontes de direito positivo” (p. 259).
Para Kelsen, a criação, a aplicação e a observância do direito são funções jurídicas no sentido lato, detendo as duas primeiras, porém, um sentido mais estrito e específico. Uma função é produzir normas (função legislativa); outra, aplicá-las (poder judicial); e outra ainda é acatar o direito, seja voluntariamente seja por meio de ato coativo (órgão judicial). Todo ato jurídico é, ao mesmo tempo, aplicação de uma norma superior e criação, regulada por essa mesma norma, de uma norma inferior, exceções feitas à própria norma fundamental e à sanção. A observância do direito, por seu turno, é a conduta contrária à que está associada à coação sancionatória, ou seja, a conduta que evita a sanção.
Passando à questão da jurisprudência, Kelsen observa que a função judicial expressa na individualização da norma, através da sentença, não é um ato puramente declaratório de direito, mas também constitutivo: “O tribunal não só tem de responder à quaestio facti como também à quaestio juris. Depois de realizadas estas duas averiguações, o que o tribunal tem a fazer é ordenar in concreto a sanção estatuída in abstrato na norma jurídica geral” (p. 264).
O tribunal deve analisar as questões de fato, para aplicar, mediante um juízo intelectivo de subsunção, o caráter abstrato das normas jurídicas gerais vigentes a situações específicas, criando assim a norma individual a ser aplicada ao caso concreto: “A norma jurídica geral é sempre uma simples moldura dentro da qual há de ser produzida a norma jurídica individual” (p. 272).
Ao aplicar o direito, o juiz pode se encontrar com as denominadas lacunas, isto é, a ausência de direito válido aplicável ao caso concreto. Aqui também Kelsen distingue as lacunas próprias – que ocorrem quando uma norma não pode ser aplicada se não for acompanhada de uma determinação legal contida em outra norma –, das lacunas técnicas, que se apresentam “[...] quando o legislador omite normar algo que deveria ter normado para que de todo em todo fosse tecnicamente possível aplicar a lei” (p. 276).
Para Kelsen, o julgador somente postula pela existência de lacunas no ordenamento quando a solução por este oferecida não o satisfaz. Assim, lacunas são ficções, a compatibilizarem os pressupostos lógico-operacionais do direito com os postulados éticos do julgador. O autor advoga a tese de que a teoria das lacunas é errônea, pois se funda “[...] na ignorância do fato de que, quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta” (p. 273).
No âmbito da criação do direito, Kelsen considera a existência de dois modelos ou tipos ideais: um em que a jurisprudência vincula-se diretamente às leis estatais e outro em que se ela se encontra liberta destas. Em uma situação intermediária se encontra, por exemplo, a common law anglo-americana, na qual as normas jurídicas gerais não são, pelo menos a título principal, criadas por um órgão legislativo central, mas pelo costume e aplicadas pelos tribunais, constituindo legítimo direito consuetudinário, distintamente do modelo europeu continental, no qual se considera que os tribunais somente aplicam o direito posto e não o produzem. Tais sistemas apresentam “[...] diferentes graus de centralização ou descentralização da função produtora do direito e, portanto, diferentes graus de realização do princípio da flexibilidade do direito (p. 282)”, que, por sua vez, está na razão inversa do princípio de segurança jurídica. Kelsen conclui o seu exame desta maneira:
Os tribunais criam direito, a saber − em regra − direito individual; mas, dentro de uma ordem jurídica que institui um órgão legislativo ou reconhece o costume como fato produtor de direito, fazem-no aplicando o direito geral já de antemão criado pela lei ou pelo costume. A decisão judicial é a continuação, não o começo, do processo de criação jurídica.
Abordando agora a temática do negócio jurídico e do contrato, Kelsen logo afirma que são fatores criadores de direito. Conforme o fato jurídico-negocial seja constituído pelo ato de somente um ou de dois ou mais indivíduos, distinguem-se, respectivamente, os negócios jurídicos unilaterais, bilaterais ou plurilaterais. “O negócio jurídico de longe mais importante no direito moderno é o negócio jurídico bilateral ou plurilateral chamado contrato” (p. 286). Observe-se que relações contratuais, no sentido lato do termo, não se circunscrevem apenas às pessoas físicas, mas estendem-se às pessoas jurídicas e aos Estados, neste último caso, por exemplo, sob a forma de tratados e acordos internacionais.
O tópico subsequente da exposição de Kelsen trata da administração, uma das três funções essenciais do Estado, conforme a teoria tradicional, ao lado das funções jurisdicional e legislativa. A administração, tal como a jurisdição, é individualização e concretização da norma, vale dizer, da norma administrativa. Mais precisamente: “A atividade designada como administração estadual é, em grande parte, da mesma natureza que a legislação e a jurisdição, a saber, função jurídica no sentido estrito de criação e aplicação de normas jurídicas” (p. 291).
Mais à frente, na exposição de Kelsen, surge o tema do conflito entre normas de diferentes escalões, ou seja, de um possível conflito entre uma norma de escalão superior e uma de escalão inferior. Conflitos da espécie se manifestam em sentenças judiciais contrárias ao sentido da lei ou de leis inconstitucionais, contrárias à norma fundamental, ou mesmo de uma norma jurídica contrária ao direito. Esta última hipótese, segundo Kelsen, é uma contradição (contradictio inadjecto); e uma norma que não se ajusta a uma norma prévia que regula sua produção não poderá ser vista como válida, por ser nula, ou melhor, não é norma jurídica, tampouco pode ser anulada pela via do direito.
Torna-se difícil sustentar a unidade do ordenamento jurídico como um sistema de normas logicamente coeso, se existe uma contradição lógica entre duas normas de distintos escalões nesse mesmo sistema, se permanecerem em vigor tanto a constituição quanto a lei que a viola, tanto a lei quanto a sentença que a contradiz. Por isso, esse caso, em que o direito é contrário ao próprio direito, é contemplado pelo direito positivo. Ao admiti-lo, o direito positivo acaba por aceitar a sua existência e, implicitamente, a sua antijuridicidade.
Na esfera do direito, a contradição entre normas de distintos escalões se manifesta simultaneamente à revogação da norma contraditória. A contrariedade à norma de uma determinada norma presumidamente válida, na realidade, é apenas a possibilidade de sua revogação por determinadas razões, ou seja, a sua anulabilidade por meio de outro ato jurídico, ou a sua nulidade, isto é, a sua negação como uma norma válida no meio jurídico. A norma contrária à norma ou é simplesmente anulável – norma válida e, portanto, conforme o direito até que seja anulada –, ou então é nula e, portanto, não é norma.
(Fim da Parte III)
Leia aqui a Parte IV.