Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 15 de junho de 2012

"A Montanha Mágica" – Crítica II: Christiane Zschirnt

Eis outro comentário à obra A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Desta feita, mais convencional em relação aos padrões costumeiros de crítica literária...

H.C./J.A.R.


ZSCHIRNT, Christiane. Livros: tudo o que você não pode deixar de ler. Tradução de Claudia Abeling. São Paulo: Globo, 2006. p. 261-266.

Hans Castorp, o filho de 23 anos de uma família de comerciantes de Hamburgo, visita seu primo tuberculoso Joachim Ziemseen no sanatório Berghof, em Davos. As três semanas previstas da estada transformam-se em sete anos. E, gradualmente, Hans Castorp vai se entranhando no isolado mundo dos Alpes suíços, no qual nada é igual à sua casa em Hamburgo, e onde Castorp deveria iniciar sua carreira de engenheiro. Ele se afunda no mar do tempo – da mesma maneira que o sanatório Berghof afunda nas massas de neve, que a cada ano duram mais e que transformam A Montanha Mágica em um reino congelado onde os enfermos febris aguardam a morte.

A ideia para o romance veio em 1912, durante uma visita Davos, onde Katia, a mulher de Thomas Mann, recebeu durante alguns meses tratamento para tuberculose. Quando o marido ficou resfriado, os médicos o aconselharam a curar a infecção no sanatório Mann, entretanto, deixou o sanatório e começou, de volta ao lar a registrar em forma de narrativa as impressões que tinha tido da viagem. Nos sete anos seguintes essa história cresceu e tornou-se um dos romances mais bonitos do modernismo.

A Montanha Mágica é o romance sobre o fim da sociedade burguesa antes da Primeira Guerra Mundial. A imagem que Mann encontrou para a morte da sociedade europeia enraizada em tradições é o mundo do sanatório. Ali, nas alturas da montanha, onde o ar se torna rarefeito, reúnem-se enfermos abastados de toda a Europa. Eles vêm da Inglaterra, da Itália, da Rússia ou da Alemanha a fim de se curar da tuberculose, observam a decadência de outros pacientes e intuem que, num futuro próximo, o mesmo destino lhes baterá à porta. Mesmo quem não está desenganado passa a maior parte do tempo na horizontal, ou seja, no tratamento de repouso. E se assemelha a um morto.

O cotidiano no sanatório restringe-se essencialmente a quatro itens: comer, conversar, repousar deitado e receber tratamentos médicos (mais ou menos nessa sequência, embora o interesse primário pela alimentação ou por conversas possam se inverter de acordo com as necessidades individuais). Para as cinco fartas refeições, os hóspedes reúnem-se no refeitório em volta de sete mesas. A distribuição dos lugares é determinada pela administração do sanatório e produz encontros de sutis diferenças — como, por exemplo, aquela entre as mesas russas “boas” e “ruins”. Ou acontecem combinações de pessoas sensíveis de diversos níveis de instrução — como entre Hans Castorp e a sra. Stör, com sua blusa escocesa de lã, e que tem a mania de usar palavras estrangeiras sem saber seu significado.

A vida na montanha mágica é esperar. Espera-se pela próxima refeição, pela notícia redentora dos médicos sobre a alta, ou pela morte. Os poucos ruídos que interrompem o silêncio mortal do afastado lugar de montanha são as tosses enfermiças dos doentes que vão esmorecendo. Até a primavera, o Berghof está envolto numa gigante coberta de neve, e o sanatório transforma-se num mundo à parte. Bem abaixo da superfície das geladas massas de neve, somente o ânimo dos pacientes permanece febril e tenso: todos eles estão ocupados em vigiar suas temperaturas corporais. A montanha mágica é um mundo intermediário entre a vida e a morte, simultaneamente explosivo e frio.

O herói Hans Castorp prolonga sua estada também por causa da presença da russa Clawdia Chauchat. Numa noite de Carnaval ela o inicia nas artes do amor. O capítulo (metade escrito em francês) alude à montanha das bruxas de Fausto, de Goethe, com o título de “Noite de Valpúrgis”. Quando madame Chauchat vai embora, Castorp fica com a radiografia do tórax da moça tomado pela tuberculose como consolo.

Ao lado de madame Chauchat, o mórbido mundo do sanatório exerce uma atração irresistível sobre Castorp. Para poder ficar em Berghof, ele acaba desenvolvendo, surpreendentemente, uma leve sintomatologia de tuberculose.

Enquanto madame Chauchat apresentou o amor a Hans Castorp, outro hóspede, o italiano Settembrini, ocupa-se de diversos aspectos do desenvolvimento de sua personalidade. Settembrini, de aparência um tanto desleixada, compensa seu aspecto exterior com a riqueza de sua erudição. Ele acredita no uso da razão de acordo com o espírito do Iluminismo e advoga princípios democráticos básicos. Em conversas intermináveis, explica os grandes temas da civilização ocidental. Castorp bebe as palavras de seu mestre.

Na medida em que A Montanha Mágica descreve as transformações intelectuais de seu jovem e ingênuo herói, o romance se encaixa na tradição do romance de formação do século XVIII. No romance de formação clássico, a educação representa “a formação moral e intelectual do ser humano, a formação de sua personalidade”. Trata-se do gradual aprendizado de um jovem, guiado por seu mestre; no final, surge a própria capacidade de entendimento e o ingresso no mundo. No caso de Hans Castorp, porém, a formação de sua personalidade não é completa, pois apenas alguns dos discursos inflamados de Settembrini trazem-lhe um entendimento real.

Depois de algum tempo, Settembrini recebe a companhia de um opositor intelectual: Leo Naphta. Jesuíta de origem judaica e de notável feiúra, Naphta advoga, ao contrário das posições burgueso-democráticas de Settembrini, uma postura complicada entre a filosofia medieval e a ditadura do povo. As inflamadas conversas dos dois eruditos sobre filosofia, história do mundo e política mundial, nas quais Hans Castorp é simples ouvinte, geram mais confusão do que esclarecimento ao rapaz. Em geral, Castorp concorda ora com um, ora com outro dos galos de rinha. (O filósofo e crítico Georg Lukács serviu de modelo vivo ao personagem Naphta, embora ele não se reconhecesse no papel).

O reaparecimento de madame Chauchat, em companhia do comerciante holandês de café Mynheer Peeperkorn, também traz confusão. Com seu rosto vermelho e sua presença jovial, o massudo Peeperkorn, ao contrário de ambos os delicados intelectuais Settembrini e Naphta, é a personificação da vitalidade. Ele bebe quantidades imensas de café e de vinho, bate com o punho na mesa e fala por meio de frases entrecortadas, enérgicas. Depois de superado o ataque de ciúme, Castorp encontra no desintelectualizado, afável, mas despótico Peeperkorn um novo modelo.

Peeperkorn se suicida quando percebe que sua vitalidade foi atacada pela doença. (Thomas Mann inspirou-se no dramaturgo Gerhart Hauptmann para compor Peeperkorn. Hauptmann foi autor, entre outros, de Die Weber [Os Tecelões]). A violência dos duelos verbais entre Settembrini e Naphta faz com que aconteça um duelo real, no qual Naphta se mata.

No final do romance, o fragor da Primeira Guerra irrompe na espera e no silêncio da montanha mágica. O grande final acontece nas trincheiras. Foi para lá que Hans Castorp foi arrastado após sete anos na montanha mágica.

O fim do romance não revela se Hans Castorp morre como soldado ou não. Sua pista se perde no tumulto da guerra. Esse epílogo diferencia o romance de formação de Thomas Mann de seus clássicos antepassados. Enquanto nestes últimos há sempre um herói que no final sabe quem é, e cuja personalidade está moldada, nada resta de Hans Castorp. A última visão do herói do livro assemelha-se a uma imagem cada vez menos nítida, que acabou perdendo todos os seus contornos. Com o final da sociedade burguesa, cuja morte se iniciou na montanha mágica, some também o sujeito burguês.

Thomas Mann definiu A Montanha Mágica como um “romance contemporâneo”. De um lado, o livro é a descrição de determinado período (ou seja, um romance de época); do outro, é um romance sobre a vivência individual da dimensão do tempo. A estrutura do romance aparece mais uma vez na utilização dupla do conceito de tempo, que mostra a decadência de toda uma cultura (na imagem do sanatório) e a desaparição do sujeito burguês (no exemplo de Hans Castorp).

A primeira significação do conceito de tempo é facilmente compreendida: Mann descreve o final histórico da sociedade burguesa, une é a sociedade doente do sanatório. A segunda significação é um pouco mais complicada. Trata-se de como o tempo é percebido. Na montanha mágica, lá, onde chega a nevar também no começo do verão e onde anos são passados entre o refeitório e o repouso, o tempo ganha uma dimensão totalmente nova. Já no primeiro dia, Castorp descobre irritado que lá em cima é necessário mais tempo que nos outros lugares: três semanas no sanatório equivalem a um dia nas “terras baixas”. Mas quanto mais ele vive na montanha mágica, mais perde o próprio sentido do tempo. Não lê mais jornais e se esquece cada vez mais frequentemente de dar corda no relógio à noite. Essa atemporalidade é a expressão de que a montanha mágica é um reino intermediário único, no qual o indivíduo vai perdendo gradualmente todos os pontos de orientação.

Certa vez, vivendo no Berghof há mais de um ano, Castorp faz um passeio de esqui. O inverno aterrou a montanha sob imensas quantidades de neve, e continua nevando. Nessa silenciosa caída da neve, a paisagem desaparece no nada neblinoso, os contornos do pico se dissolvem. Não há mais caminhos, o mundo é um caos de escuridão branca. Não há pontos de orientação. Equipado com uma barra de chocolate e uma pequena garrafa de vinho do Porto, Castorp penetra nessa paisagem fantasmagórica. Ele entra numa tempestade de neve, movimenta-se em círculos e passa a correr risco de vida. Meio congelado, exausto e levemente bêbado, Castorp procura abrigo numa cabana. Começa a sonhar, esquece do tempo e acaba num fantasioso cenário fronteiriço: em algum lugar entre a vida e a morte, o estar acordado e o sonhar, a cultura e a natureza, temporalidade e atemporalidade. Esse episódio do famoso capítulo “Neve” de A Montanha Mágica é o ponto central do romance. Aqui estão reunidos todos os temas importantes: o isolado mundo do sanatório; a confusão do herói, que procura por orientação; a dissolução das formas; a proximidade entre a vida e a morte; e a perda do conceito de tempo como indício da incessante dissolução de uma forma de existência.

"A Montanha Mágica" – Crítica I: Harold Bloom

Iniciamos, neste momento, a transcrever algumas das principais críticas que logramos obter sobre a obra de onde se extraiu o nome do personagem que dá título a este bloguinho. Começamos com uma análise da pena do famoso crítico literário norte-americano, de origem judaica, Harold Bloom.

Nota-se em Bloom uma forma meio idiossincrática de perceber a obra – e não apenas esta, senão, de uma forma geral, os livros que lhes caem aos olhos calejados pela leitura de tantas páginas –, algo à margem dos padrões de análise firmados pelos cânones da crítica literária. Mas nada que invalide a pletora de cotejos e informações que oferece ao leitor atento e ávido pelo prazer do aprendizado.

Exercício interessante é também contemplar a obra de Mann pela ótica de vários de seus comentadores. E é exatamente isso que pretendemos oferecer aos leitores destas paragens. Quem oferecerá a melhor análise da obra-prima do escritor alemão? A cada um a decisão que melhor lhe pareça!

Aqui vai a primeira mirada sobre o livro em destaque...

H.C./J.A.R.


BLOOM, Harold. Como e por que ler. Tradução de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 180-186.

Quando eu era menino (e começava a ler vorazmente), há cerca de sessenta anos, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, era universalmente considerada uma obra de ficção moderna quase comparável ao Ulisses, de Joyce, e a Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Acabo de reler A Montanha Mágica (1924), após um intervalo de quinze anos, e me apraz ter redescoberto o prazer e a força perenes do romance. Longe de ser obra datada, o livro continua a propiciar uma experiência de leitura atual e intensa, ainda que alterada pelo tempo.

Infelizmente, nos últimos trinta anos, Mann tem sido um tanto ofuscado, por não ser, em absoluto, um romancista da contracultura. A Montanha Mágica não é obra que possa ser encaixada entre Na Estrada e um exemplar de cyberpunk. O romance representa a alta cultura hoje em dia posta em xeque, pois trata-se de um livro que pressupõe considerável erudição e reflexão. O protagonista, Hans Castorp, jovem engenheiro alemão, vai ao encontro de um primo internado em um sanatório de tuberculosos nos Alpes suíços, para o que seria uma rápida visita. Uma vez constatado que ele próprio sofre de tuberculose, Castorp permanece sete anos na Montanha Mágica, para ser curado, e para prosseguir em seu Bildung, ou formação, educação cultural.

A princípio, Mann descreve Hans Castorp como um “jovem singelo”, mas isso constitui uma ironia. Castorp não é um jovem comum, mas tampouco é, essencialmente, propenso a buscas espirituais, pelo menos, não no início do romance. Em todo caso, não é um “jovem singelo”. Infinitamente capaz de assimilar ensinamentos, imensamente suscetível a colóquios profundos e ao estudo, Castorp é submetido a um extraordinário e sofisticado processo educacional na Montanha Mágica, principalmente, ao interagir com professores antitéticos: primeiro, e prioritariamente, temos Settembrini, humanista liberal italiano, discípulo do poeta e livre-pensador Carducci; mais tarde, na metade do romance, surge Naphta, reacionário radical, jesuíta judeu, marxista-niilista, opositor da democracia, defensor da síntese religiosa medieval e crítico da perda de fé observada na Europa. Os debates entre Settembrini, defendendo a Renascença e o Iluminismo, e Naphta, apóstolo da Contra-Reforma, são sempre implacáveis, chegando a um ponto crucial quando Naphta verbaliza uma profecia que haveria de triunfar na Alemanha uma década após a publicação de A Montanha Mágica:

– Não, senhor! – prosseguiu Naphta. – O segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do Eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror (MANN, 1980, p. 445).

Naphta e Settembrini obtêm, igualmente, a atenção do leitor, mas apenas Settembrini, apesar da infinita ironia de Mann, conquista o nosso apreço. A ironia é, ao mesmo tempo, o recurso mais marcante de Mann e, talvez, a sua maior fraqueza (como ele bem o sabia). O protesto do escritor, em 1953, contra os que o criticavam permanece útil:

Fico sempre um tanto entediado quando os críticos restringem a minha obra definitiva e inteiramente ao campo da ironia, e me consideram um ironista inveterado, sem, ao mesmo tempo, levar em conta a questão do humor.

A ironia tem diversos significados na literatura, e a ironia de uma época, raramente, será a mesma de outra. Do meu ponto de vista, a criação literária sempre contém um certo grau de ironia, e por isso Oscar Wilde fez a advertência de que toda poesia ruim é sincera. Mas a ironia não é uma condição precípua da linguagem literária, e o significado nem sempre é um andarilho exilado. No sentido mais amplo do termo, “ironia” implica dizer algo cujo real significado difere do conteúdo óbvio, às vezes chegando mesmo a sugerir o oposto do que é dito. Muitas vezes, a ironia de Mann é uma forma sutil de paródia, mas o leitor que estiver aberto à interpretação de A Montanha Mágica encontrará um romance dotado de uma seriedade meiga e altiva, em última análise, uma obra que encerra grande paixão, intelectual e emocional.

Hoje em dia, a fascinante história de Mann, primeiramente, não traduz ironia nem paródia, mas a carinhosa visão de uma realidade que não mais existe, de uma alta cultura europeia perdida para sempre, a cultura de Goethe e Freud. No ano 2000, A Montanha Mágica é vista como um romance histórico, monumento de um humanismo perdido. Publicado em 1924, o romance retrata uma Europa prestes a se despedaçar na Primeira Guerra Mundial, catástrofe que faz Hans Castorp descer da sua Montanha Mágica. Grande parte da cultura humanística sobreviveu à Grande Guerra, mas Mann, profeticamente, prenuncia o terror nazista que se instalaria no poder não mais que uma década depois do surgimento do romance. Embora Mann talvez pretendesse criar uma carinhosa paródia da cultura europeia, as contra-ironias do tempo, bem como das mudanças e da destruição, fazem de A Montanha Mágica, no ano 2000, um estudo da nostalgia, imensamente tocante.

O próprio Hans Castorp hoje me parece um personagem mais sutil e simpático do que na primeira leitura que fiz do romance, há mais de cinquenta anos. Ainda que Mann veja Castorp como um indivíduo em busca de algo, não considero crucial ao protagonista do romance a questão da busca. Castorp não busca um objeto sagrado, nem um ideal. Figura de um distanciamento admirável, Castorp é capaz de ouvir, com igual satisfação, o racionalista Settembrini, o terrorista Naphta, ou o estranho vitalista Mynheer Peeperkorn, que chega à Montanha, tardiamente, em companhia da sensual e bela eslava Claudia Chauchat, com quem Castorp, apaixonado, passa apenas uma noite de prazer. O distanciamento erótico de Hans Castorp parece um tanto extraordinário; apaixonado por Claudia, só depois de passados sete meses, ele desfruta de um único momento de plenitude sexual, em seguida, retraindo-se ao longo dos sete anos de sua estada na Montanha, e tampouco sente muito ciúme, quando Claudia ressurge em companhia de Peeperkorn. Castorp é órfão desde os sete anos de idade e, na adolescência, vivenciara um intenso fascínio homoerótico por um colega de escola, de origem eslava, Przibislaw Hippe, predecessor de Claudia. O amor de Castorp por Claudia faz renascer a paixão reprimida que ele sentira por Hippe, e, de um modo bastante místico, a paixão dupla produz no jovem os sintomas da tuberculose, e o mantém na Montanha por um período de sete anos, uma formação, no espírito de um humanismo agonizante.

Que o amor seja visto como uma enfermidade, como tuberculose, é unia convincente fantasia da parte de Mann, sem dúvida, reflexo do próprio homossexualismo (a duras penas) reprimido do autor, cuja grande expressão será sempre a novella intitulada Morte em Veneza. O leitor se detém na Montanha Mágica porque Castorp se apaixona por Claudia à primeira vista. Seja qual for a realidade clínica da doença de Castorp, o leitor é enfeitiçado à medida que a história se desenrola, uma vez que a experiência universal, no que tange à mudança de planos, de local ou de condição psíquica quando se está apaixonado, é integrada, sagazmente, à iniciação do leitor no mundo da Montanha Mágica. Tenho dúvidas se o público leitor (masculino ou feminino), necessariamente, apaixona-se pela sinuosa e enigmática Claudia, mas a identificação com Castorp, indivíduo dotado de infinita boa vontade e distanciamento sexual, é difícil de ser evitada, considerando-se o esmero da arte de Mann. Nem sempre vemos, sentimos ou pensamos como Hans, mas estamos sempre ao seu lado. A exceção de Poldy, meu homônimo no Ulisses de Joyce, não há na ficção moderna personagem mais atraente do que Castorp. As tentativas de Joyce no sentido de promover distanciamento não foram bem-sucedidas, e Leopold Bloom espelha muitas das qualidades pessoais mais cativantes de Joyce. O parodista irônico Thomas Mann, apesar de seus esforços conflitantes, não consegue se separar de Castorp.

Atualmente, está em voga na crítica literária negar tanto a realidade do autor quanto a do personagem; no entanto, conforme todos os modismos, esse há de passar, e insisto que o leitor não se furte ao prazer da identificação com seus personagens mais queridos, pois os autores não têm conseguido resistir a essa satisfação. A minha exortação tem limite: Cervantes não é Dom Quixote, Tolstoi não é Anna Karenina (embora a amasse), em Operação Shylock, Philip Roth não é “Philip Roth” (nenhum dos dois!). Contudo, de modo geral, os romancistas, por mais irônicos, identificam-se com seus protagonistas; o mesmo se dá com os dramaturgos. Kierkegaard, filósofo religioso dinamarquês que escreveu O Conceito da Ironia, observou que Shakespeare é o grande mestre da ironia – noção indiscutível. Entretanto, mesmo o mais irônico dos autores encontrava-se, de modo mais autêntico e misterioso, no personagem de Hamlet, conforme proponho adiante. Por que ler? Porque só podemos conhecer, intimamente, algumas poucas pessoas, e talvez porque, na verdade, jamais as conheçamos. Após ler A Montanha Mágica, conhecemos Hans Castorp profundamente, e como vale a pena conhecê-lo!

Relendo A Montanha Mágica, chego à conclusão de que a maior ironia de Mann (talvez involuntária) é iniciar o livro com uma referência a Hans Castorp, dizendo que “o leitor em breve [o] conhecerá como um jovem singelo, ainda que simpático” (MANN, 1980, p. 9). Sou professor universitário há quarenta e cinco anos, e posso afirmar: Castorp é o aluno ideal outrora proclamado pelas universidades (antes da autodegradação a que tais instituições ora se submetem), e jamais encontrado. Castorp tem imenso interesse em tudo, em tudo que é conhecimento, mas no conhecimento como um bem em si mesmo. Para Castorp, conhecimento não significa, absolutamente, poder, seja sobre terceiros ou sobre ele próprio; conhecimento nada tem de faustiano. Hans Castorp é extremamente valioso para leitores no ano 2000 (e posteriormente), por encarnar um ideal hoje arcaico, mas sempre relevante: o cultivo do desenvolvimento pessoal, de modo a possibilitar a completa realização do potencial do indivíduo. A avidez de confrontar ideias e personalidades está aliada, em Hans, a uma notável energia espiritual; jamais meramente cético, ele, tampouco, se deixa arrebatar (exceto no auge da paixão pela dúbia Claudia). A eloquência humanística de Settembrini, as exortações terroristas de Naphta, o balbuciar dionisíaco de Peeperkorn inundam Castorp, mas jamais o afogam.

A insistência de Mann quanto à palidez de Castorp se torna uma espécie de piada, pois o jovem engenheiro naval tem afinidade com experiências místicas e até mesmo ocultas. Chegara à Montanha Mágica trazendo consigo o livro Vapores Oceânicos, mas se torna leitor incansável de obras sobre as ciências da vida, especialmente psicologia e fisiologia, e, com base nas mesmas, embarca em contínuas “viagens culturais”. Qualquer noção que ainda perdure (apenas como resultado da ironia de Mann) da suposta “singeleza” de Hans Castorp dissolve-se no maravilhoso capítulo intitulado “Neve”, pouco antes do final da sexta seção, de um total de sete em que o romance é dividido. Preso em uma tempestade de neve, durante uma solitária excursão em que saíra a praticar esqui, Hans quase não sobrevive, e é acometido de uma série de visões. Quando estas desaparecem, ele admite que “a morte é uma grande força”, mas afirma: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos” (MANN, 1980, p. 552).

Daí em diante, A Montanha Mágica inicia a sua própria dança da morte, à medida que se aproxima a deflagração da Primeira Guerra Mundial. Naphta desafia Settembrini a um duelo com pistola; Settembrini atira para o ar, e o enfurecido Naphta mata-se com um tiro na cabeça. O pobre Settembrini cai em depressão e sua pedagogia humanística é estancada. O dionisíaco Peeperkorn, defensor da personalidade e do culto ao sexo, confronta a própria senilidade e impotência, e também se mata. Hans Castorp, patrioticamente, engaja-se na luta armada, em defesa da Alemanha, e Mann diz que, embora as chances de o jovem sobreviver não sejam grandes, a questão permanecerá em aberto.

O leitor, quase que a despeito de Thomas Mann, considera as chances de Castorp bem mais promissoras, pois este tem algo de mágico, um encantamento absolutamente à margem do tempo. Castorp pode parecer a apoteose do homem comum, mas é, nitidamente, demoníaco e, na verdade, não precisa da infinda instrução cultural que recebe (embora a mesma lhe traga benefícios). Hans Castorp tem a Bênção, assim como o José, de Mann, mais tarde, na tetralogia José e seus Irmãos. Despedindo-se do protagonista, Mann diz que a importância de Castorp decorre do seu “sonho de amor”. Hoje em dia, no ano 2000, e no futuro, é grande a importância de Castorp, pois o leitor, tentando compreendê-lo, perguntar-se-á: qual é o meu sonho de amor, ou a minha ilusão erótica, e como esse sonho ou essa ilusão afeta as minhas possibilidades de crescer ou desabrochar?

Referência

MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Tradução de Herbert Caro. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.