Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Benjamin Zephaniah - Movimentos Antiescravagistas

Zephaniah, escritor e poeta negro inglês, reporta-se aqui ao Movimento de Libertação Animal (MLA), surgido lá pelos anos 70 do século passado, para defender os animais do tratamento explorador dos humanos, tanto mais em razão de que são capazes de experimentar sofrimento quando abatidos para nos servir de alimento.

 

O poeta contradita o argumento daqueles que se opõem às ideias éticas albergadas pelo MLA, buscando desvelar o fundamento discriminatório a sustentar os interesses que estão por trás da arguição levada a efeito pela legião opositora – aí inclusos os empresários da indústria alimentícia –, alicerçada no fato de que pertencemos a uma espécie de ordem pretensamente superior às de toda a fauna restante.

 

Zephaniah cria em seus versos um paralelo entre a exploração dos animais pelo homem e a exploração do homem pelo homem, neste caso, pela via da escravidão, o caráter subjugador e visceralmente antiético a assomar em ambas os casos.

 

Para os que se interessam mais de perto pelo assunto, sugiro a leitura do livro “Libertação Animal”, do filósofo australiano Peter Singer (n. 1946), já um clássico sobre a matéria. O original em inglês pode ser encontrado facilmente neste endereço da grande rede.

 

J.A.R. – H.C.

 

Benjamin Zephaniah

(n. 1958)

 

Anti-Slavery Movements

 

Some people say

Animal liberators are not

Working in the interest of animals.

But I’ve never seen liberated animals

Protest by going back to their place

Of captivity.

But then again

I’ve never heard of any liberated slaves

Begging for more humiliation

Or voting for slavery.

 

Animals vote with their feet

Or their wings

Or their fins.

 

A Gaiola

(Berthe M. P. Morisot: pintora francesa)

 

Movimentos Antiescravagistas

 

Algumas pessoas dizem que

Os libertadores de animais não

Trabalham no interesse dos animais.

Porém nunca vi animais libertos

Protestarem para regressar ao seu lugar

De cativeiro.

Objetando uma vez mais,

Nunca ouvi falar de escravos libertos

Que implorem por mais humilhação

Ou votem pela escravidão.

 

Os animais votam com os seus pés,

Suas asas

Ou suas barbatanas.

 

Referência:

 

ZEPHANIAH, Benjamin. Anti-slavery movements. In: BENSON, Gerard; CHERNAIK, Judith; HERBERT, Cicely (Eds.). Best ‎‎poems on the underground. 1st. publ. London, EN: Weidenfeld & Nicolson, ‎‎2009. p. 300.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Nicanor Parra - A cruz

Que a poesia de Parra tem muito de iconoclasta, provocativa, incitadora a saltos intrépidos de perspectiva, já não há tanto a se expender em palavras: melhor é deixar a lírica do próprio autor chileno dizer por si, como nas linhas deste breve poema, a moverem o leitor, de início, a um determinado caminho – pretensamente hierático –, mas que, ao fim, se nos revela profano demais!

 

O título concedido ao poema – “A cruz” –, com toda a sua carga polissêmica, muito se presta a criar a ambivalência tencionada pelo poeta, vertida em opostos como o sacro e o obsceno, o transcendente e o vulgar, o espiritual e o material, o conspícuo e o pilhérico, podendo-se deduzir, pela forma como dispostos os versos, que Parra deixa para explicitar, no final, o “modus vivendi” que mais lhe apraz.

 

J.A.R. – H.C.

 

Nicanor Parra

(1914-2018)

 

La cruz

 

Tarde o temprano llegaré sollozando

a los brazos abiertos de la cruz.

 

Más temprano que tarde caeré

de rodillas a los pies de la cruz.

 

Tengo que resistirme

para no desposarme con la cruz:

¡ven como ella me tiende los brazos?

 

No será hoy

mañana

ni pasado

mañana

pero será lo que tiene que ser.

 

Por ahora la cruz es un avión

una mujer con las piernas abiertas.

 

Em: “Obra gruesa” (1969)

 

Mulher sentada com as pernas abertas

(Gustav Klimt: pintor austríaco)

 

A cruz

 

Cedo ou tarde chegarei soluçando

Aos braços abertos da cruz.

 

Mais cedo que tarde cairei

Ajoelhado aos pés da cruz.

 

Tenho que resistir

Para não me casar com a cruz:

Veem como ela me estende os braços?

 

Não será hoje

 amanhã

  nem depois

de amanhã

mas será o que tem de ser.

 

Por enquanto a cruz é um avião

uma mulher com as pernas abertas.

 

Em: “Obra grossa” (1969)

 

Referência:

 

PARRA, Nicanor. La cruz / A cruz. Tradução de Joana Barossi e Cide Piquet. In: __________. Só para maiores de cem anos: antologia (anti)poética. Seleção e tradução de Joana Barossi e Cide Piquet. Edição bilíngue. 1. ed. São Paulo, SP: Editora 34, 2018. Em espanhol: p. 239; em português: p. 126.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Hilda Hilst - Esse poeta em mim sempre morrendo

Perpassa um espectro de paixão algo platônica em toda a série que integra os “Dez chamamentos ao amigo” – composição que parodia as clássicas “canções de amigo” trovadorescas –, sendo a infratranscrita seção X uma das que mais evidencia a falante a pervagar pela ilimitada região da poesia, um tanto confrangida, é verdade, entre a “matéria da solidão” e os absortos pensamentos centrados no dileto “amigo”.

 

Não pense o leitor que tudo não passe de mero exercício de imaginação da poetisa, para dar vazão aos seus propósitos líricos! Afinal, o poemário “Júbilo, memória, noviciado da paixão”, de 1974 – de onde transcrito o poema em comento –, possui uma dedicatória que não deixa margem a dúvidas sobre a existência real do “amigo” a quem direcionado: “A M.N. / porque ele existe”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Hilda Hilst

(1930-2004)

 

Dez chamamentos ao amigo

 

IX

 

Esse poeta em mim sempre morrendo

Se tenta repetir salmodiado:

Como te conhecer, arquiteto do tempo

Como saber de mim, sem te saber?

Algidez do teu gesto, minha cegueira

E o casto incendiado momento

Se ao teu lado me vejo. As tardes

Fiandeiras, as tardes que eu amava,

Matéria da solidão, íntimas, claras

Sofrem a sonolência de umas águas

Como se um barco recusasse sempre

A liquidez. Minhas tardes dilatadas

 

Sobre-existindo apenas

Porque à noite retomo a minha verdade:

Teu contorno, teu rosto, álgido sim

 

E por isso, quem sabe, tão amado.

 

Em: “Júbilo, memória, noviciado da paixão” (1974)

 

Senhora do Mistério

(Edward M. Eggleston: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

HILST, Hilda. Esse poeta em mim sempre morrendo. In: __________. Da poesia. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p. 236.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

José Hierro - Vida

O poeta substantiva o “tudo” e o “nada” para criar um soneto a refletir sobre o percurso de uma vida, agora chegando à sua reta final: a morte parece subtrair qualquer sentido a esse trânsito carregado de acontecimentos meio fugazes, quase irreais, mas que, em suma, é a totalidade do que podemos experimentar enquanto seres humanos.

 

Quando os nossos olhos já estão pejados de tantos dias, temos a tendência a dar menos valor às exterioridades e mais ao conteúdo que preenche nosso interior, buscando nas memórias o correspondente crédito capaz de superar a ideia de insignificância de nossa existência individual, para assim atingirmos algum conforto espiritual ao adentrarmos os umbrais da eternidade.

 

J.A.R. – H.C.

 

José Hierro

(1922-2002)

 

Vida

 

Después de todo, todo ha sido nada,

a pesar de que un día lo fue todo.

Después de nada, o después de todo,

supe que todo no era más que nada.

 

Grito “¡Todo!”, y el eco dice “¡Nada!”.

Grito “¡Nada!”, y el eco dice “¡Todo!”.

Ahora sé que la nada lo era todo,

y todo era ceniza de la nada.

 

No queda nada de lo que fue nada.

(Era ilusión lo que creía todo

y que, en definitiva, era la nada.)

 

Qué más da que la nada fuera nada,

si más nada será, después de todo,

después de tanto todo para nada.

 

Não há vida sem luz

(Jutta Blühberger: artista austríaca)

 

Vida

 

Depois de tudo, tudo foi um nada,

mesmo que um dia tenha sido tudo.

Depois de nada, ou depois de tudo,

soube que tudo não era mais que nada.

 

Grito “Tudo!”, porém o eco diz “Nada!”.

Grito “Nada!”, porém o eco diz “Tudo”.

Agora atino que o nada era o tudo,

e o tudo não mais que cinza do nada.

 

Nada remanesce do que foi nada.

(Era a ilusão que se fiava em tudo,

mas que, decididamente, era o nada.)

 

O que importa se nada fora nada,

se mais nada será, depois de tudo,

depois de tanto tudo para nada.

 

Referência:

 

HIERRO, José. Vida. In: __________. José Hierro para niños. Edición preparada por Yolanda Soler Onís e ilustrada por Jesús Aroca. 1. ed. Madrid, ES: Ediciones de la Torre, 1998. p. 119. (Colección ‘Alba y Mayo’; Serie ‘Poesía’, n. 50)

domingo, 14 de abril de 2024

Ferreira Gullar - Meu povo, meu poema

O povo brasileiro é o destinatário de um plantio alegórico em forma de poema e, ao mesmo tempo, o objeto a quem a voz lírica expressa suas expectativas de futuro, de retomada de um processo capaz de firmar garantias de atingimento de um maior equilíbrio social e – por que não dizer? – político-econômico em Pindorama.

 

Note-se que o poema pertence a um período produtivo do poeta que coincide com a dureza do regime autoritário, vigente no país desde o golpe militar de 1964, e tal enquadramento muito condiciona a mirada de quem o lê nos dias que correm, muito embora quase não se percebam em suas linhas os consectários elementos de ordem política, do momento em que escrito.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ferreira Gullar

(1930-2016)

 

Meu povo, meu poema

 

Meu povo e meu poema crescem juntos

como cresce no fruto

a árvore nova

 

No povo meu poema vai nascendo

como no canavial

nasce verde o açúcar

 

No povo meu poema está maduro

como o sol

na garganta do futuro

 

Meu povo em meu poema

se reflete

como a espiga se funde em terra fértil

 

Ao povo seu poema aqui devolvo

menos como quem canta

do que planta

 

Em: “Dentro da noite veloz” (1962-1974)

 

Homem colhendo o fruto de uma árvore

(Paul Gauguin: pintor francês)

 

Referência:

 

GULLAR, Ferreira. Meu povo, meu poema. In: __________. Toda poesia. 21. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 2015. p. 201.